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Petróleo

Na televisão, uma mulher em fuga cai junto à berma de uma estrada. A mulher cai uma vez, cai duas vezes, cai três vezes. Um tipo está sentado no estúdio a comentar. Diz qualquer coisa sobre petróleo. A realização repete a imagem em loop . A mulher cai quatro vezes, cinco vezes, seis vezes. O tipo continua a dizer qualquer coisa sobre petróleo. A mulher cai sete, oito, nove, dez vezes. O tipo fala sobre petróleo. A mulher cai onze vezes, doze vezes, treze, catorze, quinze vezes. Petróleo. Dezasseis, dezassete, dezoito. O tipo fala de petróleo.

Anoitece

Leio nos jornais que cidadãos europeus negros, africanos, de origem asiática e do médio oriente que tentam fugir aos tanques de Putin são barrados na fronteira por soldados ucranianos: primeiro passam os brancos. Do outro lado da fronteira, na Polónia, os mesmos refugiados são alvo de ataques xenófobos e racistas por parte de nacionalistas polacos: «segundo a polícia polaca, os agressores, vestidos de preto, agrediram grupos de refugiados não brancos, nomeadamente estudantes que tinham acabado de chegar à estação de comboios de Przemyśl.» Em Portugal, cidadãos russos são alvo de ameaças e actos de descriminação, que «chegam em forma de telefonemas, mensagens de texto ou comentários nas redes sociais». Nas televisões, os repórteres que acompanham a vaga de refugiados não se cansam de repetir que os ucranianos são «pessoas como nós», usam as mesmas roupas, os mesmos telemóveis, os mesmos carros. Não são afegãos, sírios, iraquianos ou sudaneses a fugirem em botes pelo Mediterrâneo. São «i

Guerra

Leio o que posso sobre a invasão da Ucrânia pelas tropas do governo russo e não consigo compreender. Quem ganha com esta guerra? E ganha o quê? Quem perde, sabemo-lo bem: os sempiternos perdedores, os pobres da Ucrânia, da Rússia e de toda a parte, os que não têm meios para se defender das agressões do mundo. Mas o que ganham exactamente os «vencedores»? Trata-se somente de somar mais poder e dinheiro? Se é só uma questão de poder e dinheiro, não consigo compreender. Ou há mais alguma coisa? Provar que se pode desafiar directamente a morte? Ter nas mãos o destino de um número infindável de pessoas? Ser-se deus? Jogar com a nossa estranha atracção pelo fim do mundo?

Extraterrestres

Ontem à noite vi na televisão Viva la Vie , um dos filmes esquecidos de Claude Lelouch. Estava cansado e sem vontade de fazer nada. O filme não é grande coisa. Uma história dentro de outra história, e ambas dentro de um sonho. Ou o contrário. Não sei bem. Não é isso que interessa. O filme passa-se em plena guerra fria. Os ricos constroem abrigos nucleares nas piscinas. Os criados compram fatos de borracha para se protegerem das radiações. No sonho de um dos personagens (Michel Piccoli), a guerra nuclear é evitada através de um simulacro que envolve seres alienígenas: os extraterrestres não estão interessados em explorar um planeta inviável, sem seres humanos e carregado de radiação. Entretanto, na Ucrânia os «esforços diplomáticos» não deram em nada. Nos jornais, a guerra parece «inevitável». Os «enviados especiais» das televisões ao teatro dos acontecimentos estão a fazer o seu trabalho em «condições muito difíceis». Quem nos salva disto? Quem nos protege da humanidade? Onde estão os

Zeus está desejoso de os observar

Quando chegou o tempo de os heróis serem exterminados, teria bastado uma peste. Mas uma guerra, uma longa e emaranhada guerra, era muito mais bela. Assim, os deuses empenharam-se em fazê-la nascer e durar. Zeus não teria perdido tempo a observar das alturas as devastações da peste. Pelo contrário, quando os Troianos e os Aqueus voltam a enfrentar-se, Zeus está desejoso de os observar, e por vezes também, de sofrer. Roberto Calasso, As núpcias de Cadmo e Harmonia . Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo.

Guerra

O vento que soprou com fúria durante a noite, arrancou mais uma vez os painéis publicitários da Rua da Constituição. Há pedaços por toda a parte, misturados com guarda-chuvas partidos e galhos de árvores. O que sobrou dos anúncios pende agora das estruturas metálicas como trapos sujos e sem préstimo. Pequenos destroços da grande guerra entre a natureza e as leis do mercado.

Gruas

Para onde quer que se olhe, há gruas a disparar em todas as direcções sobre a cidade. Fortalezas voadoras a competir com pardais e gaivotas pelo domínio do espaço aéreo. No chão, os manobradores parecem miúdos com joysticks  a olhar para o céu. Heróis de um jogo de guerra, prontos a conquistar mais um metro quadrado de terra, casa após casa, rua após rua, bairro após bairro, um dia após o outro.

Querido Ozu,

o Japão está a ganhar a guerra.

12 de Agosto de 1945

A bomba atómica foi descoberta - a guerra mundial chegou ao fim. Após dias de tempestade em que o vento, soprando a centenas de quilómetros por hora, assobiava por entre as árvores, a tranquilidade regressou. Um nevoeiro fino como um véu paira sobre o lago de Zurique enquanto viajo até à estação. Acomodo-me num canto para não fumadores do expresso e começo a ler. Em Winterthur, uma mãe e a sua filha, grande como uma galinha de engorda, forçam a entrada no comboio. A mãe transforma a carruagem silenciosa num quarto de crianças, prepotentemente, como se fosse o centro do mundo. Uma boneca é instalada no assento, a rapariga é penteada, o pequeno-almoço emerge de um saco de papel amachucado. O seu rosto gordo está ostensivamente voltado na minha direcção. Já não vejo nada à frente... Carl Seelig. Acaba a guerra mundial, começa a outra guerra, a guerra comezinha do quotidiano. Com todos os seus tiranetes, oficiais de pacotilha e fogo lento.