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Mensagens

Meu caro Max

O que dizemos sobre o pedido que Kafka fez a Brod antes de morrer? “Meu caro Max, meu último pedido: tudo que eu deixo para trás […] deve ser queimado sem ser lido”. A vontade-testamento de Kafka é uma mensagem enviada, com certeza, mas ela não se torna a vontade-testamento de Brod; na verdade, a vontade-testamento de Brod, figurativa e literalmente, obedece e recusa a vontade-testamento de Kafka. Curiosamente, Kafka não pede de volta seus escritos para que ele os possa destruir pessoalmente. Pelo contrário, ele deixa Brod com a charada. Sua carta para Brod é uma maneira de lhe dar todos os trabalhos e pedir que ele seja o responsável por sua destruição. Há um paradoxo intransponível aqui, já que a carta torna-se parte dos escritos e assim parte do próprio corpus ou da obra, como muitas das cartas que Kafka havia preservado meticulosamente através dos anos. E ainda assim, a carta pede que os escritos sejam destruídos, o que logicamente envolve a nulificação da própria carta e, assim,

Três minutos

Todas as noites, Dadaíve Kander – sim, esse mesmo – observava a lua a percorrer o céu. Era um hábito do qual não abdicava, nem por todo o ouro do mundo. - Não consigo adormecer sem antes observar a lua a percorrer o céu. É um hábito do qual não abdico nem por todo o ouro do mundo – dizia. Uma noite, a lua não apareceu e não percorreu o céu. Dadaíve Kander coçou a cabeça durante mais ou menos três minutos. Depois encolheu os ombros e adormeceu.

O Fénéon é uma festa

Mais informações sobre "Notícias em três linhas", de Félix Fénéon, e a Colecção Avesso, aqui .

Chuva

Depois vieram os maus dias, a neve, os grandes frios. Instalaram-se na cozinha e faziam entrançados de canas; ou então andavam pelos quartos, conversavam ao canto da lareira, contemplavam a chuva que caía. Flaubert, Bouvard  e Pécuchet . Tradução de Pedro Tamen.
Mais informações sobre "Notícias em três linhas", de Félix Fénéon, e a Colecção Avesso, aqui.

A Criação

No princípio, Deus criou o céu e a terra, as duas metades do mundo, e barrou cada uma delas com manteiga. As duas metades do mundo, amplas e abundantes, puras e bem nutridas de manteiga. Cobertos de manteiga estão o céu e a terra, belos na manteiga, nutridos na manteiga, perfumados na manteiga, soberbos na manteiga. Deus mastigando vorazmente, ferozmente, voraz e ferozmente. O rosto resplandecente de Deus. O céu e a terra, ambos cobertos de manteiga, dentro da barriga de Deus, céu e terra, o grande alimento, dentro da barriga de Deus. Deus arrotando – perdão! – de satisfação, a barriga cheia, a evidência da glória e esplendor de Deus. (Sucedeu assim. Tal e qual.) A barriga cheia, céu, terra e manteiga, em infinita digestão. Deus mais olhos que barriga, tomado de cólicas, retorcendo a boca, preso de louca aflição, lançando impropérios tão cabeludos que mil universos recuam para longe. Deus a vomitar: nasce o homem, nasce a mulher e mais dois ou três ratos. Publicado

Em breve, nas livrarias

"Notícias em Três Linhas", de Félix Fénéon. Pela primeira vez em português, na nova Colecção Avesso. Com tradução, prefácio e notas de Manuel Resende. Mais informações sobre a Colecção Avesso aqui.

Algumas "Notícias em Três Linhas", de Félix Fénéon

«Se o meu candidato perder, mato­‑me», declarara o Sr. Bellavoine, de Fresquienne (Sena­‑Inferior). Matou­‑se (Desp. part.). *** O Sr. Scheid, de Dunquerque, disparou três vezes contra a mulher. Como não conseguia acertar, apontou à sogra: em cheio (Havas) . *** Apostara beber de enfiada quinze absintos, comendo um quilo de vaca. Ao nono, Téophile Papin, de Ivry, caiu redondo. *** Louis Lamarre não tinha nem emprego, nem casa, mas alguns tostões. Comprou, num merceeiro de Saint‑Denis, um litro de petróleo, que bebeu. *** Em Brest, por imprudência de um fumador, a menina Ledru, toda de musselina, ficou com as coxas e os seios queimados (Desp. part.) . *** Nas cercanias de Noisy‑sous‑École, o Sr. Louis Delillieau, de 70 anos, caiu morto: insolação. Rápido, o cão Fiel comeu‑lhe a cabeça. *** Radiante: «Podia ter tido mais!», exclamou o assassino Lebret, condenado, em Rouen, a pena perpétua de trabalhos forçados (Desp. part.) . Félix Fénéon, "

Rosas

Desejava um poeta pobre - será necessário dizê-lo? - oferecer uma dúzia de rosas à sua inspiradora. Mas as rosas custavam caro. Era Inverno, e no Inverno as rosas têm preços inatingíveis para os poetas. Por mais fantasias contáveis que fizesse, só conseguia pagar onze. Mandou-lhe onze, e aludindo ao rosto da moça, belo e fresco como uma flor, escreveu-lhe: "Você completará a dúzia." Pitigrilli,  A Mulher de Putifar .

A história de amor de René Odillot

Pela primeira vez, René Odillot estava verdadeiramente apaixonado. Desejava pintar o nome do seu amor em todas as paredes e talhá-lo no tronco de cada árvore. Acima de tudo, tinha vontade de o proclamar aos sete ventos. Aos sete ventos ou mais. Mas o dia estava belo e claro, e o ar tão calmo. Oh, não soprava vento, nem sequer a mais leve brisa. Impedido pelos terríveis caprichos da natureza - é quase utópico contrariar o destino dos ventos -, não fez nada daquilo que desejava e assim acabou o único grande amor que teve na vida.

Maçadores

O velho ardil de fazer com que um parente ou criado nos chame quando uma visita se prolonga além da decência é perigoso. Em 1879, encontrava-se Benjamin Disraeli em visita a Bismarck, e o primeiro-ministro britânico perguntava ao Chanceler de Ferro o que fazia para desenvencilhar-se dos visitantes importunos. - É simples - respondeu Bismarck. - Quando a minha mulher me vê às voltas com um desses, manda um criado dizer-me que o Imperador me chama. Naquele instante entrou um mordomo, inclinando-se: - Sua Majestade deseja ver, com urgência, Sua Alteza o Príncipe de Bismarck. Pitigrilli, A Mulher de Putifar .

Perto do muro

- Biche, biche, biche... - fez ele com uma voz acariciante, dirigindo-se a uma massa peluda que passava perto do muro. O gatinho deteve-se e olhou para aquele homem tão amável. - Biche, biche, biche... - fez ele de novo, batendo levemente com as mãos nos joelhos. O gato aproximou-se confiante, a cauda agitando-se no ar. O homem abriu o saco de plástico e, rápido como um relâmpago, lançou-o sobre o gato. Segurando bem as pontas e, acelerando o passo, pôs-se então a caminho.

Chá e biscoitos de amêndoa

Conta-se que certa noite o Diabo apareceu a Fausto. O Diabo, criatura espiritualíssima, astuciosa, mestre em assuntos sombrios e chantage, queria por força vender a alma a Fausto. E pelos vistos não a vendia cara. Mas não sou especialista em assuntos de mercado e, por isso, como se costuma dizer, faço questão de manter um certo recato. Fausto sentou-se na sua cadeira de bruços e durante alguns minutos não fez mais nada senão coçar o nariz. Um relógio distante bateu meia-noite e meia. O candeeiro lampejava no tecto como um olho enorme e misterioso. No telhado, um gato fez brilhar as suas garras. A Fausto nem sequer lhe passava pela cabeça investir algum do seu precioso cabedal na aquisição de uma alma, mesmo tratando-se da alma do Diabo, coisa rara e inestimável, suponho eu, que não sou especialista, e também supunha Fausto. Houve um momento de silêncio, que se prolongou por várias horas. Estou a encurtar muito, senão nunca mais acabava. - Hum! – murmurou Fausto, olhando o fumo do se

Os três corvos

Três corvos pousavam sobre uma forca. Aqueles sábios pássaros, sem deixar de digerir o jantar que tinham acabado naquele instante, dissertavam sobre o homem. - O homem é um bom animal - disse um deles. - Gosto do homem. Justamente porque é tão extraordinário e tão volúvel. Já comi bastantes, mas nunca encontrei dois iguais. - As minhas observações conduzem à mesma conclusão - anuiu o outro, cientificamente. - Mas parece-me que os homens nos enganam. Fazem-se pendurar ou deitam-se na erva, mas a todos lhes falta o coração e o cérebro. Não os têm consigo. Contudo, esses dois bocados são, precisamente, os que mais aprecio. Que lhes farão eles? - Animal! - disse o terceiro, o mais velho e o mais sábio dos corvos. - Esses bocados são as suas mulheres que lhos comem... Jenö Heltai, Contos alegres húngaros . Tradução de Armando Ferreira e Andrés Revesz.

Confúcio disse

Em geral, quando a gente encontra um espírito aberto, entra e verifica que está é vazio. *** Chama-se plenipotenciário um ministro que viaja sem a mulher. *** Amigo, jamais procure ler nas entrelinhas. Sobretudo se um trem vem vindo. *** Esta é a verdade: a vida começa quando a gente compreende que ela não dura muito. *** É porque ninguém gosta de trabalhar que o mundo progride. *** Com muita sabedoria, estudando muito, pensando muito, procurando compreender tudo e todos, um homem consegue, depois de mais ou menos quarenta anos de vida, aprender a ficar calado. *** Ser génio não é difícil. Difícil é encontrar quem reconheça isso. *** Estranha é a química do corpo humano: você põe uma coroa na cabeça de um homem e ele fica logo com o rei na barriga. Millôr Fernandes, Pif-Paf . Próximo sábado, 4 de Outubro, pelas 17h00, no Gato Vadio.

O Socorro

Ele foi cavando, foi cavando, cavando, pois sua profissão - coveiro - era cavar. Mas, de repente, na distracção do ofício que amava, percebeu que cavara de mais. Tentou sair da cova e não conseguiu. Levantou o olhar para cima e viu que, sozinho, não conseguiria sair. Gritou. Ninguém atendeu. Gritou mais forte. Ninguém veio. Enlouqueceu de gritar, cansou de esbravejar, desistiu com a noite. Sentou-se no fundo da cova, desesperado. A noite chegou, subiu, fez-se o silêncio das horas tardas. Bateu o frio da madrugada e, na noite escura, não se ouvia mais um som humano, embora o cemitério estivesse cheio dos pipilos e coaxares naturais dos matos. Só pouco depois da meia-noite é que lá vieram uns passos. Deitado no fundo da cova o coveiro gritou. Os passos se aproximaram. Uma cabeça ébria apareceu lá em cima, perguntou o que havia: «O que é que há?» O coveiro então gritou, desesperado: «Tire-me daqui, por favor. Estou com um frio terrível!». «Mas coitado!» - condoeu-se o bêbado. - «Tem toda