Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

O cotovelo dentro do prato

Mas os ritos religiosos não são os únicos. A sociedade impõe mil cerimónias que não passam igualmente de uma espécie de missa permanente que ela oferece a si própria. Um exemplo disso é a maneira de se comer em sociedade. Charlot jamais consegue usar os talheres de modo conveniente. Põe sempre o cotovelo dentro dos pratos, derruba a sopa sobre as calças, etc. O ápice é seguramente quando ele próprio é garçom de restaurante (em Charlot patinador , 1916, por exemplo).  Religioso ou não, o sagrado está presente em toda a vida social, não apenas no magistrado, no policial, no sacerdote, mas no ritual de alimentação, nas relações profissionais, nos transportes públicos. É por ele que a sociedade mantém sua coerência, como em um campo magnético. Inconscientemente, a cada minuto, nos posicionamos segundo suas linhas de força. Mas Charlot é feito de outro metal. Não apenas escapa à sua influência, mas a própria categoria do sagrado não existe para ele, sendo tão inconcebível quanto a rosa pa

A máquina

A máquina inimiga para Chaplin é sobretudo sinal de desumanização, na taylorização imposta pela indústria concorrencial, reduzindo o homem-operário a uma escravatura minuciosamente contabilizada, em tempos e gestos repetidos até à paranóia. O riso que tal situação desperta no espectador é horrivelmente condicionado pela sua própria experiência, de profissão em profissão - e se é a técnica que faz o homem, e não, em última análise, o meio social, o operário americano não se distingue, psicossocialmente, do operário soviético, em transes de Stakhanovismo... A frieza com que Tempos Modernos foi recebido nos Estados Unidos não foi, assim, diferente da suspeição que acompanhou o filme na Rússia, mesmo que a crítica oficiosa com algum mal-estar, procurasse distinguir as duas situações sociopolíticas, reduzindo a americana o destino da mensagem chapliniana. (...) A máquina constitui, na economia do filme, e na proporção da suas cenas, articuladas de gags em gags , a sua parte essencial: um

Quatro por quatro

Imaginemos um díptico. A face da esquerda está em branco. Na face direita podemos ver  A lei do mercado , de Stéphane Brizé. Se, num exercício, tivesse de preencher a face em branco e completar o díptico, escolheria Chronique d'un été , de Jean Rouch e Edgar Morin. Uma das histórias mais impressionantes de Chronique d'un été é a de Angelo, o operário da Renault que diz trabalhar vinte e quatro horas por dia: acorda às cinco da manhã, segue de transporte até à fábrica, cumpre uma jornada de nove horas de trabalho, regressa a casa, come e dorme para recuperar energias, e começa tudo de novo às cinco da manhã do dia seguinte. Um dia após o outro, sem pausas. Dormir, diz ele, faz parte do trabalho. O que mudou entre a história de Angelo e a de Thierry, o personagem de Brizé, que trabalha como segurança num supermercado dos nossos dias para «ganhar a vida»? Em  A lei do mercado , há uma sequência em que Thierry e a mulher estão a aprender a dançar rock, naquele que é o único mo

Contra a angústia da folha em branco

Um dos contos mais famosos de Virgilio Piñera narra a história de um homem que se alimenta literalmente de crianças pequenas, «de poucos meses». Uma espécie de apreciador swiftiano das qualidades gastronómicas da carne de criança. Ora, para alimentar este peculiar capricho gastronómico, o narrador envolve-se em cenas de caça, rigorosamente planeadas e sem margem para erro. O conto intitula-se Algumas crianças e o enredo detém-se num episódio de caça que corre mal, o primeiro e único percalço numa longa carreira de caçadas e repastos bem sucedidos. O homem fica encurralado no interior de um elevador com uma das suas vítimas, em copioso pranto, e na companhia de um pachorrento São Bernardo. No exterior, a mãe, vizinhos e autoridades prepararam-se para capturar o criminoso. O narrador não tem maneira de escapar, é o fim da história. Encurralado, sem recursos, Piñera lança mão de uma outra saída, a saída sobrenatural, o truque de magia: «abri a boca ao São Bernardo e, sem perder um segu

Cipreste

Na primeira cena de Vai e Vem , João Vuvu, o personagem de João César Monteiro, lança um fígado aos pombos. Que espécie de vai e vem há entre esta cena, a primeira do seu último filme, e o mito de Prometeu? Que fogo João César Monteiro roubou aos deuses? No derradeiro plano, esse famoso, comovente e genial último plano , o olho de César Monteiro ocupa toda a tela, olhando-nos de frente. Nesse olho, reflecte-se uma árvore, o amplo cipreste do jardim do Príncipe Real , em Lisboa. A árvore dos mortos que dá sombra aos vivos. O vai e vem entre o mundo dos espectros, “das quimeras”, nas palavras de João Vuvu, e o nosso mundo. É nesse exacto lugar, entre os dois mundos, que se situa toda a arte. O plano dura mais de cinco minutos, o tempo do motete Qui habitat in adjutorio altissimi , de Josquin Des Prés, que se ouve em fundo e cujo texto consiste nos oito primeiros versos do Salmo 90. 1. Tu que habitas sob a protecção do Altíssimo, que moras à sombra do Omnipotente, 2. diz ao Senhor: S

Exercício

Imaginar Chaplin e Keaton, ou Chaplin e Lloyd, a interpretarem, com todos os truques do vaudeville, este conto de Daniil Kharms , o mais chaplinesco dos grandes escritores. PÚCHKIN E GÓGOL GÓGOL cai dos bastidores para o palco, onde fica sossegadamente deitado. PÚCHKIN entra em cena, tropeça em GÓGOL e cai. PÚCHKIN Que raio é ist...! Será possível: parece o Gógol! GÓGOL (levantando-se) Que azar o meu! Já uma pessoa não pode ter sossego.  (Dá dois passos em frente, tropeça em Púchkin e cai.)  Esta é boa: parece-me que tropecei no Púchkin! PÚCHKIN (levantando-se)  Não há um minuto de sossego! (Dá dois passos, tropeça em Gógol e cai.) Mas que raio! Parece-me que voltei a tropeçar no Gógol! GÓGOL (levantando-se) É só incómodos, sempre e em todo o lado! (Dá dois passos em frente, tropeça em Púchkin e cai.) Mas que azar o meu! Outra vez o Púchkin! PÚCHKIN (levantando-se) Isto é uma vadiagem, é o que é! Uma vadiagem! (Dá dois passos em frente, tropeça em Gógol e cai.)  Raios me partam! Out

Manuel Resende

Às vezes ocorrem-me lembranças que não sei se sonhei ou se foi alguém que mas contou. Certas histórias sobre o Manuel Resende, por exemplo. Creio que foi o Osvaldo Silvestre que me disse que o Resende aprendeu alemão a traduzir O Capital , de Karl Marx, uma palavra após outra, com a ajuda de um dicionário. Mais tarde, traduziu o melhor Freud que li em português. E Brecht, Schnitzler, Kafka. Também já não sei se ouvi ou li, ou talvez tenha sonhado, que o título do primeiro livro do Manuel António Pina, Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde , publicado em edição de autor, em 1974, foi-lhe soprado pelo Manuel Resende. Foram colegas de redacção no Jornal de Notícias , companheiros de tertúlia no Piolho e amigos até ao fim. De resto, ainda são amigos e sei que falam todos os dias. Porque os mortos deitaram o corpo dentro de nós. [Resende, 2004] Li o Manuel Resende muito antes de o conhecer pessoalmente. Comecei pela tradução de A Caça ao Snark , do Ca