Na primeira cena de Vai e Vem, João Vuvu, o personagem de João César Monteiro, lança um fígado aos pombos. Que espécie de vai e vem há entre esta cena, a primeira do seu último filme, e o mito de Prometeu? Que fogo João César Monteiro roubou aos deuses?
No derradeiro plano, esse famoso, comovente e genial último plano, o olho de César Monteiro ocupa toda a tela, olhando-nos de frente. Nesse olho, reflecte-se uma árvore, o amplo cipreste do jardim do Príncipe Real, em Lisboa. A árvore dos mortos que dá sombra aos vivos. O vai e vem entre o mundo dos espectros, “das quimeras”, nas palavras de João Vuvu, e o nosso mundo. É nesse exacto lugar, entre os dois mundos, que se situa toda a arte. O plano dura mais de cinco minutos, o tempo do motete Qui habitat in adjutorio altissimi, de Josquin Des Prés, que se ouve em fundo e cujo texto consiste nos oito primeiros versos do Salmo 90.
1. Tu que habitas sob a protecção do Altíssimo, que moras à sombra do Omnipotente, 2. diz ao Senhor: Sois meu refúgio e minha cidadela, meu Deus, em quem eu confio. 3. É ele quem te livrará do laço do caçador, e da peste perniciosa. 4. Ele te cobrirá com suas plumas, sob suas asas encontrarás refúgio. Sua fidelidade será para ti um escudo de proteção. 5. Tu não temerás os terrores noturnos, nem a flecha que voa à luz do dia, 6. nem a peste que se propaga nas trevas, nem o mal que grassa ao meio-dia. 7. Caiam mil homens à tua esquerda e dez mil à tua direita, tu não serás atingido. 8. Porém verás com teus próprios olhos, contemplarás o castigo dos pecadores.
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