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Mensagens

O homem da câmara de filmar

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende VI E há momentos em que o ritmo acelera, a marcha avança, vertiginosa, até ao fundo do século XX. O leitor corre por dentro do filme de Vertov, numa louca e febril espiral com Maiakovski e Rodchenko. Mas o olho do poeta vê mais do que o olho da câmara. Vê a imagem e o que está por trás dela, o objecto e o seu avesso de minuciosas rodas dentadas, o homem e o seu desespero cor de fogo, o homem e a sua insondável solidão. Eia pontes! Eia gruas, braços arranhando o nevoeiro dos portos! Eia formigamento de braços moles aguentando a estiva contra o peso e o sol! Eia suor, eia rumor, ronronar, triturar, estuar, estourar abrir das ostras e da noite, eia súbito lançamento da manhã, eia multidão invadindo as ruas, invadindo os transportes, os portos, a alma, os olhos, invadindo tudo! Eia! Tinir das chaves de fenda, borbulhar do ferro em brasa, chispas de aço fendendo a escuridão Eia! Proteína da argamassa, cimento, estuque, fermento dos seis

Surrealismo

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende V Não é preciso revolver as páginas para encontrar as longas e cintilantes raízes do surrealismo. Estão por toda a parte, no fundo e à superfície. «Vidros arestas peixes epilépticos»; «ali no marulhar das tardes barbitúricas.» As raízes do surrealismo, engenhosamente combinadas com humor, referências clássicas, citações bíblicas, acontecimentos, realismo . Se a palavra não é sinónimo directo de liberdade é pelo menos o instrumento possível para a alcançar. Um insulto atirado à cara da História. A resistência também se faz com a gramática, o papel e as palavras, as furiosas pedras que nos restam. Até que ponto pode chegar um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos? – a frase que poderemos intitular de central. E esta posição de abjecção, de desespero irresignável, leva-nos à única posição válida: – SOBREVIVER, mas Sobreviver LIVRES. António Maria Lisboa, Erro Próprio .

Poesia do real

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende IV Toda a poesia é do real. Toda a poesia é do quotidiano. Sentir e pensar são reais. O absoluto e o relativo são reais. O bem e o mal. Deuses e demónios também são reais. O sonho é real. O mistério é real. Os pequenos acontecimentos são reais. São reais as cidades, as aldeias, os campos, os cafés, as filas de trânsito, as salas de espera dos hospitais, o turismo. São reais o crime, o genocídio, o fogo amigo, os danos colaterais. Os bancos, as taxas de juro, a dívida. O suicídio é real. A história também. É tudo tão real que o mundo é uma ferida aberta em cada um de nós. E o pouco alívio que a poesia nos dá, não é pouco, é muito. Ocupamos um território de gestos apalpamos à nossa volta um estádio de liberdade Passam mendigos sapateiros mulheres homens concretos mineralogia urbana em seus passos comedidos despidos até por dentro cauteleiros mancos por não poderem ser mais nada  Que vêm aqui fazer por uns minutos a esta praça Homens m

História

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende III Universo feito de um só pano (Soneto Americano) Tudo o que existe por fora e por dentro de nós é feito da mesma substância, e essa substância é a História. Ainda que vivêssemos sete vidas, nada de essencial mudaria. Amor, sonho, frio, noite, fome, ódio, guerra. A História está por todo o lado, no ar que respiramos, na mais longínqua das nossas células . É o chão movediço que pisamos, os mortos que carregamos. Se a História nunca se repete porque é que tudo se repete? Século após século, milhões de dias após milhões de dias, horas, minutos, segundos. Existirá alguma força capaz de a mudar? Um dia, a utopia deixará de ser utopia? Arre estou farto de não haver aqui nada De perscrutar com o mínimo olhar o mínimo gesto De ver o barbeiro da rua coleccionar selos sebosamente De haver sempre este cheiro a peixe frito de ser sempre tão fisicamente meio-dia Quando é meio-dia De estar telhados sobre telhados casas sobre casas olhando a imen

Queda

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende II Estavam nus e despiram-se. (Love Store) Cada poema é uma branda, lenta e trágica queda para dentro. Um mergulho que começa em pleno mundo e avança pelo interior da pele. Porque não há nada que nos faça mergulhar mais profundamente na nossa solidão, senão participar do mundo e de todas as suas coisas, alegrias e dramas. Por isso, um verso branco conduz a um verso mais escuro. Uma coisa viva contém já a sua promessa de morte. Um restolhar de asas é uma espécie de pequena catástrofe. Desce Desce Desce para que te chegue ao fundo rebenta-me os pulmões os olhos as veias Ser tudo tão obscuro e solar (Crítica da Razão Pragmática.)