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Mensagens

É tudo verdade

Leio numa revista brasileira que, dentro de dias, abre mais uma edição do festival internacional de documentários É Tudo Verdade , no Rio de Janeiro. Em Paris, decorre o festival Cinéma du Réel . Entre nós, o Porto/Post/Doc classifica-se a si mesmo como um “festival de cinema do real” e usa o slogan «As nossas histórias são reais». Curiosa esta recorrente necessidade de afirmar o documentário como o género cinematográfico do «real» e da «verdade». Há aqui uma espécie de horror à ficção que contradiz justamente o tipo de filmes que têm sido premiados - e bem - nestes certames. No Porto/Pos/Doc, por exemplo, que é o caso que conheço melhor, os mais belos filmes do festival revelam sempre um olhar , uma montagem e uma escolha pessoalíssima dos seus autores. Não sei se a «verdade» e o «real» têm alguma relevância para o caso. Há certamente uma contaminação do documentário pela ficção. Mas esse jogo, entre criador e espectador - o que é verdade e o que é ficção? - é a parte verdadeirame

Dentes portugueses

Adeus, adeus, meus dentes! Só mais outro dia, E vamos dirimir esta pugna entre nós, Divórcio que a dentista estrangeira oficia Num desconsentimento total e feroz. Essa fidelidade tão à portuguesa, Feita de tanto golpe baixo, tantas fintas, Com que me temperastes o prazer da mesa, Fruto de fero amor, tão vero e troca-tintas, Ficai com ela, que eu dispenso despedidas. A culpa é toda minha, devo confessar Que não tinha dinheiro e descurei medidas Evidentes no plano mais elementar. O remorso católico arde-me feridas No sítio que Calvino gosta de brocar. Manuel Resende, Poesia Reunida .

Um Fausto

Dois homens, pai e filho, ambos velhos. Outrora, grandes glórias da ciência e da academia. O pai, de noventa anos, praticamente esquecido pela sociedade, o filho, de setenta, a caminho disso. O pai lamenta-se de não ter morrido antes de cair na implacável espiral de decadência provocada pela velhice. O filho ainda acredita que é capaz de lutar contra ela. O pai aconselha o filho a matar-se enquanto há tempo, enquanto se não transforma num “semimorto” e não começa dentro dele o processo de nascimento do “monstrozinho”. O filho ainda pode aspirar à imortalidade, diz o pai: só alguém que morre no momento certo, no auge da glória pública, pode viver para sempre. “Mata-te”, repete ele ao filho, apontando-lhe a bengala (mais simbólica do que concreta). O filho, por sua vez, diz sentir-se bem, “completamente vivo”, com ânimo para aproveitar a vida e a fama, e afastar o terror da decrepitude e decadência. O pai insiste para que o filho se suicide com uma ampola de cianeto. O filho, calma e pac

O fantasma do cavalo de Turim em Ödön von Horváth

CAROLINA: Isto é um Austro-Daimler? RAUCH: Acertou! Bravo! CAROLINA: O meu ex-namorado conduziu um Austro-Daimler. Sabe, era chauffeur . Um homem esquisito. Olhe, há três meses, quisemos os dois ir dar um passeio ao campo; pois não é que teve uma bulha dos diabos com um cocheiro porque ele tinha dado chicotadas no cavalo? Por causa de um cavalo, calcule! Quando ele próprio é chauffeur ! Uma pessoa tem de dar valor às coisas. Ödön von Horváth, Casimiro e Carolina . Tradução de Maria Adélia Silva Melo.

O que se passa naquelas montanhas?

“Quando a morte entra no quarto, a poesia é uma idiotice”, diz Ebru Ojen, a narradora de Meteors , numa espécie de eco longínquo da famosa frase de Adorno sobre a impossibilidade de escrever um poema depois de Auschwitz. O mais intrigante desta frase é que o filme de Gürcan Keltek é exactamente o contrário do que ela enuncia: Meteors  é uma obra terrivelmente bela sobre a guerra. A explicação para isto talvez resida no facto de não existirem explicações claras neste filme. O que se passa nas remotas montanhas do Curdistão, na fronteira entre a Turquia e a Síria? O que se passou durante a campanha militar turca contra os curdos, em 2015? Não estou certo de que o filme responda a esta pergunta. Na verdade, duvido que o filme queira responder ao que quer que seja. O que vemos, desde o primeiro plano - a lua crescente a desvanecer-se numa poeira densa, que também pode ser nevoeiro ou nuvens - é uma sucessão de imagens de uma beleza esmagadora. Cenas de caça nas montanhas nevada

O coiso

CALONICE (...) Conta lá que assunto é esse que tanto te preocupa. LISÍSTRATA Eu já conto. Mas, antes de falar, vou-vos só fazer uma perguntita, coisa sem importância. CALONICE À vontade. LISÍSTRATA Dos pais dos vossos filhos vocês não têm saudades, quando estão mobilizados em campanha? Que eu bem sei que todas vocês têm o marido fora. CALONICE Isso é verdade. O meu homem, coitado, há cinco meses que está ausente, lá para a Trácia, de sentinela ao... Êucrates. MÍRRINA E o meu, já lá vão sete meses completos, em Pilos. LÂMPITO O meu, mal está de volta do regimento, lá deita outra vez mão ao escudo e põe-che a andar. LISÍSTRATA E nem mesmo amantes nos sobra para amostra. Que desde que os Milésios nos tramaram, nem sequer uma coçadeira de coiro de dois palmos de comprido eu vi, que nos desse ao menos um triste consolo. Será que vocês estariam dispostas, se eu arranjasse uma artimanha, a juntarem-se a mim para acabar com a guerra? CALONICE Bolas, eu estava! Nem que

Nunca mais

GUIL (tenso. Irritado progressivamente ao longo da pantomina, e do comentário) Mas o que é que tu sabes da morte? ACTOR É aquilo que os actores fazem melhor. Têm que aproveitar o talento que lhes foi dado, e o talento deles é: morrer. Sabem morrer heroicamente, comicamente, ironicamente, lentamente, repentinamente, abjectamente, encantadoramente, ou de uma grande altura. (...) GUIL É só o que sabem fazer - morrer? ACTOR Não, não - também matam maravilhosamente. Na verdade, alguns deles matam melhor do que morrem. Os outros morrem melhor do que matam. São uma equipa. ROS E quem é quem? ACTOR Isso não tem grande importância. GUIL (medo, derisão) Actores! os mecânicos do melodrama barato! Isso não é morte! (Mais tranquilo) Vocês gritam, sufocam, caem de joelhos, mas isso não traz morte a ninguém - não apanha ninguém desprevenido para lhe começar a sussurrar dentro do crânio e a dizer - "Um dia vais morrer". (endireita-se) Vocês morrem tantas vezes, como é que podem est