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A mostrar mensagens com a etiqueta Jean-Marie Straub

Depois virá aquela morte

Só ontem me apercebi que os campos, as vinhas e o trigo, o céu e as nuvens, as árvores e a terra, o som dos insectos e dos pássaros, a água a correr, tudo isso que vemos e ouvimos na segunda parte de Dalla nube alla resistenza nas deambulações do bastardo por Santo Stefano Belbo — é Nefele sentada no ramo da árvore.  Como Olimpia Carlisi avisara, as coisas mudaram no alto dos montes, os homens já não se misturam com as ninfas das nascentes e dos montes, com as filhas do vento, com as deusas da terra ; uma mão mais forte impede esse movimento. A potência da natureza transformou-se numa paisagem— ainda bela e inebriante, porém sem encontros nem diálogos.  Mas até essas imagens parecem tão longínquas, vindas de um passado recente (o filme é de 1978) que nos foge — quase arqueológicas? Onde existe ainda aquela terra? Por quanto tempo será viva? Temo que vivamos já depois do último plano do filme, depois da música de Gustav Leonhardt. E as palavras de Pavese revelam-se mais escuras do que

Selfie XII

Pareço as testemunhas de Jeová da rua a tentar convencer os fiéis a irem à sessão Da Nuvem à Resistência . Até já lhes passo papeizinhos com a palavra do senhor para a mão. 

Othon, de Huillet-Straub

O que há de mais sólido no mundo são as palavras. Creio que também é isso que Othon prova. As palavras são feitas de um material próprio, cujo segredo os próprios físicos ignoram. Os carros continuarão a circular em Roma até serem substituídos por outra coisa qualquer. Os regimes cairão em silêncio ou com estrondo, e outros surgirão em seu lugar. O tempo continuará a produzir ruínas. Mas aqueles personagens permanecerão ali, onde sempre estiveram, a dizer aquelas palavras, até não restar mais nada.

Exercício de tradução

Othon é um filme violento . Não só são violentas as tramas que se urdem no império romano pela luta pelo poder — quem irá suceder a Galba? — mas toda a forma como Danièle Huillet e Jean-Marie Straub levantam o texto de Corneille .   Filmar ao ar livre, nos montes Capitólio e Palatino em Roma, cenas que são de gabinetes e corredores onde é normal esconder as intenções ou até mudá-las em função das oportunidades do momento é, talvez, o primeiro acto arrojado. Ameaças, traições, cinismo, casamentos de conveniência, todas essas intrigas que descrevem o comportamento de uma classe dirigente apodrecida na sua imponente ambição, vistas assim, ao sol e ao vento, entre a vegetação, as pedras e as fontes, sobranceiras ao ruído do trânsito da cidade, parecem-nos mais reais e mais aflitivas e também mais intoleráveis — não há escuridão para esconder o gesto vil nem veludos para abafar o som das palavras hipócritas.  E se essa determinação abre a urgência do filme, tudo o que se segue investe ain

Einstellung

Einstellung  também significa disposição moral. (...) O que é necessário, creio, é uma ideia. Uma ideia que não seja uma intenção simbólica nem psicológica. Uma ideia moral, logo política. Tenho andado a pensar no que escrevi ontem porque não basta dizer que é preciso um outro tipo de acção para homenagear os filmes de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. Lembrei-me do verso de Hölderlin e percebi que, por exemplo, os pobres também têm direito a olhar o rio é igual a um dia talvez a terra volte a brilhar verde para nós — é o mesmo desejo, a mesma reivindicação.  Então, naquele terreno abandonado do antigo bairro de São Vicente de Paulo devia ser construído um jardim — era uma resposta justa ao trabalho de Huillet e Straub. Um jardim de laranjas doces. E depois projectavam-se um ou dois filmes as vezes que fossem necessárias até ficar clara a relação entre as imagens no écran e as laranjas, entre a vida dos antigos e as nossas — uma dialéctica das sensações. Podem objectar que isto n

Da nuvem à resistência

A projecção dos filmes de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub integral e por ordem cronológica é um acontecimento notável.  No entanto, passada a primeira euforia fico a pensar se não seria necessário um gesto mais incisivo para os homenagear. Uma mulher que percebe o que são as bruxas:  Quando damos de comer aos gatos em Roma, compreendemos o que se passava com as bruxas; muitas vezes tinha a impressão que era a minha pele que estava em jogo. Aí, dei-me conta que havia mulheres que, porque observavam as estrelas à noite, porque apanhavam ervas de noite, porque os gatos as seguiam... foram queimadas. É isto as bruxas! E que explica: O que nos interessa, são as pessoas que dizem os textos de Pavese, o que elas fazem na vida, a maneira como dizem os textos, os problemas que têm com aquilo que dizem, e por isso, bruscamente, aquilo que eles dizem já não é de Pavese mas sim do sujeito que o diz e que, no começo, nem sabia quem era Pavese. O único interesse do texto ou daquilo a que chamas

Punctum

Ao ler a notícia da retrospectiva integral do trabalho de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet entre setembro e dezembro na Casa Manoel de Oliveira, os olhos fogem-me para o último parágrafo:  vai obrigar a uma revisão de toda a legendagem dos filmes .
O vento é importante, (...) o vento não é nada mais do que espírito.

Voltar aos clássicos

Jean-Marie Straub: ... Digamos que uma humanidade que só se safa através da violência... é o que eu penso... é coisa muito grave. É muito grave e, um dia, vai ter de surgir outra coisa. Seja como for, vai ser preciso tratar das feridas... Aqui pelo contrário, o que surge lentamente e vai subindo, subindo, não tem nada a ver com um bálsamo. É o contrário. São as árvores da floresta que começam a andar. Danièle Huillet: Apertou o cinto? Jean-Marie Straub: Siga! Obrigado, amigo Às vezes confundimos a mesquinhez do mundo com ofensas ao mundo. Ah! Se houvesse facas e tesouras, escopros, chuços e arcabuzes, morteiros, foices e martelos, canhões, canhões, dinamite. Úlimo diálogo de "Onde Jaz o teu Sorriso?"(inclui, em itálico, uma fala do amolador de "Sicilia!"), Assírio & Alvim