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Pesadelo perfumado

Diz-se que viajamos para ver o mundo. Que mundo vêem os turistas que viajam até ao Porto? Que pesadelo perfumado filmaria Kidlat Tahimik na nossa cidade?

O mar

Há uns anos, não era Abril, mas Agosto. Era o mais cruel dos meses. A cidade parecia uma longa e interminável tarde de domingo. As ruas desertas, os cafés fechados. Tudo fechado, excepto as farmácias e os supermercados. Não havia esplanadas. Não havia cinema, muito menos teatro. Os dias arrastavam-se sob o calor. Nas praias, a nortada varria toalhas, guarda-sóis, sacos de plástico — isso não mudou. Agora, a cidade está a rebentar de turistas. Ao fim da tarde, depois do trabalho, descemos até à Baixa no meio da corrente. Na esplanada do Candelabro, observamos distraídos o movimento das vagas. Maré alta e maré baixa, maré alta e maré baixa. Enquanto as gaivotas lançam os seus anzóis de cima dos telhados.

Jacarandás

Foi um Inverno seco. Talvez por isso os jacarandás do Porto estejam tão tristonhos. São muito poucos e este ano quase passam despercebidos. Um jacarandá que nesta altura não se assemelhe a uma estrela rock, exuberante, desmesurada, megalómana, num palco iluminado por mil focos de luz roxa, é uma árvore tão macambúzia como um eucalipto.

Na parede da Capela do Senhor do Olho Vivo, na Rua Antero de Quental, substituíram a centenária caixa de esmolas em ferro por uma coisa de plástico branco. A fé do pároco na solidez do plástico e, sobretudo, na integridade do próximo é muito impressionante. Talvez a tão apregoada crise de fé da Igreja tenha sido manifestamente exagerada.

A linha

Estação da Trindade, fim de tarde. A linha do metro divide os passageiros por classe. No Cais 1, os passageiros que regressam aos condomínios e hotéis da Boavista, Matosinhos, Maia e Vila do Conde: funcionários públicos, professores, estudantes altivos de economia, casais de «turistas seniores», arquitectos vestidos à moda, jovens empreendedores ao telefone. No Cais 2, os passageiros que vivem em Campanhã, Rio Tinto, Gondomar ou Fânzeres: trabalhadores do comércio e da restauração, empregadas domésticas, operários, crianças sozinhas vindas da escola, pensionistas e jogadores de cartas dos bancos de jardim.

Deus está em casa e pode ouvir

Uma mulher e um miúdo pequeno estão sentados nas escadas da Igreja da Lapa, à espera do autocarro. O miúdo brinca com uma máscara cirúrgica. Nisto, um golpe de vento arranca-lhe a máscara da mão e atira-a para longe. O miúdo grita «ai, caralho, a minha máscara» e corre atrás dela. A mãe repreende-o num cerrado sotaque tripeiro: «Não digas asneiras à frente da igreja, grande morcão!»

Uma experiência

Montar um filme a partir das longas sequências de Jeanne Moreau a caminhar pelas ruas de Paris ( Ascenseur Pour l'Echafaud , de Louis Malle) e Milão ( La Notte , de Michelangelo Antonioni), e dar-lhe este título: O Porto segundo Jeanne Moreau .

Pão de mistura

No café moderno da Baixa, atafulhado de plástico e pechisbeque, a empregada tripeira (o acento é cerradíssimo) explica a um casal de turistas franceses vestidos à moda, que aquele pão é de mistura. «— Pão de mistura. Aqui chamamos “parolo”. — Párrólô? —Isso, parolo!»

Compreendes?

Estou a contar carneiros na montra da Académica e há dois tipos a beber cerveja à porta da Mirita. Apanho a conversa a meio. Um tipo conta ao outro que foi falar com um terceiro, a propósito de qualquer assunto cujo teor não chego a perceber. «— E o que lhe disseste? — Disse assim: “Olá, boa tarde, vai para a puta que te pariu.” —... — Isto para ser educado, compreendes? — Compreendo.»

Seis da tarde

Às seis da tarde é quase noite cerrada. O empregado do Vitória baixa discretamente a luz dos candeeiros. Há três gatos pingados a ler na sala que dá para a rua. A esta luz parda de velório, é impossível decifrar as letras no papel. Fecho o livro, pago o café e saio. É a vez da grande sombra pôr os óculos e ler-me a mim: «Era uma vez um fantasma com calças a caminho de casa.»

Striptease

As tílias da Lapa despem-se longa e demoradamente. Todos os dias, mais um pouco. O ar está carregado de electricidade e folhas amarelas. Na fachada da igreja, os santos de pedra, vestidos até ao pescoço, observam e guardam segredo. Vão arder por dentro até o Inverno chegar.

Lar doce lar

Um plano do filme Distopia , de Tiago Afonso: um grupo de moradores do Bairro do Aleixo, no Porto, assiste à implosão, ao longe, do prédio onde viviam; ao lado, um painel publicitário com o anúncio de uma marca de artigos de decoração e o título «Lar doce lar».

Nervos | Ilusão | Sonhei que fodia contigo

Rua Mártires da Liberdade, Porto. 

Dada vive

Leio no jornal que o empresário Pedro Pinto, dono da Livraria Lello, tem uma nova ideia de negócio para o Porto: criar o «Bairro Dada», na Rua do Loureiro. Releio o texto para ter a certeza de que não me enganei. «Numa homenagem ao dadaísmo feita pelo próprio Pedro Pinto, o “Bairro Dada”, cujo nome “já está registado”, será “a nova grande centralidade do turismo na cidade”.» Sinto-me imediatamente inspirado pelo empreendedorismo de Pedro Pinto e ocorre-me também uma nova ideia de negócio: o Bairro das Tripas à Moda do Porto, na Spiegelgasse, em Zurique, com sede no Cabaret Voltaire. Mas, pensando melhor, e agora sem ironia, talvez fosse difícil pensar numa ideia mais dadaísta do que criar o «Bairro Dada» na velha Rua do Loureiro. Dada está vivo.