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A coisa está em marcha

Um homem no Marquês, à porta de um café. Setenta e muitos. A bengala encostada à parede. Com uma moeda, risca uma raspadinha. «Oh, meu Deus! Oh, meu Deus!» Risca uma vez, risca outra. «Oh, meu Deus!» A coisa está em marcha. A moeda risca, risca, risca uma e outra vez ainda. Nada. Larga a raspadinha no lixo. Tira um maço de tabaco do bolso e acende um cigarro. Pega na bengala. Desce a Constituição, fumando.

E assim por diante

Da janela do Candelabro, observo um tipo que está na esplanada ao lado e que acaba de pedir vinho. O empregado traz a garrafa, serve uma pequena quantidade no fundo do copo e espera que o cliente prove. O tipo é como eu: de vinho, conhece apenas o rústico prazer de beber. Seja como for, compõe o ar mais digno possível, leva o copo à boca, bebe um bocadinho, fixa um ponto vago numa parede do largo e, finalmente, faz que sim com a cabeça. O empregado já serviu milhares de tipos como este. Ambos sabem que todos estes gestos são inúteis. Mas alguém pode estar a olhar, talvez de uma janela próxima. É preciso repetir os gestos outra vez. E outra vez. E outra vez. E assim por diante.

Cegos

Manhã cedo. Bebo um café junto à janela da cozinha. Lá fora, os vizinhos passeiam os animais de estimação. Se por um fenómeno esquisito, os animais de repente se evaporassem, os vizinhos pareceriam cegos a caminharem para a frente e para trás, segurando bengalas em forma de trelas.

Os pássaros

Leio no Jornal de Notícias que os estudantes da Faculdade de Letras do Porto andam assustados. Têm sido atacados por violentos bandos de gaivotas, que lhes roubam a comida e a paz de espírito. O jornal inclui os comentários impressionantes de alguns alunos: Quando nos sentamos no pátio, elas colocam-se em posição, a observar e à espera. Mas o problema é que, quando atacam, é sempre todas juntas. Luís Aguiar, 20 anos. Eu já vi a roubarem algumas vezes. E como são agressivas, as pessoas têm medo. Jéssica Magalhães, 21 anos. Não podemos comer em paz. Acredito que a faculdade saiba. Mas deviam fazer alguma coisa. Rafael Tavares, 19 anos. O problema não é só no pátio. Já chegamos a estar dentro do bar, e a ter gaivotas ao nosso lado. Para além de incomodar, não é nada higiénico. Lucas Frias, 20 anos.

Durante a noite

Ontem, depois das dez, a polícia fechou a entrada do bairro com dois carros-patrulha. Um camião gigante veio e ocupou a rua. Homens com coletes reflectores elevaram-se no ar, bruxuleantes como pirilampos. Uma grua com mais de vinte metros desapareceu durante a noite. Esta manhã, o céu está cheio de nuvens e gaivotas. Nada mais.

No metro

Quando são surpreendidas sem bilhete ou com o passe caducado, algumas pessoas tentam escapar, outras protestam, outras ainda arranjam desculpas. Esta manhã, os seguranças surpreenderam um tipo sem bilhete que não tentou escapar, não protestou, não arranjou desculpas. O homem baixou a cabeça. Fixou um olhar submisso no chão. E pronto.

Quando?

Tinha setenta e muitos, talvez mais. Caminhava pelo passeio, arrastando atrás de si um daqueles expositores de folhetos das Testemunhas de Jeová. Demorou dez minutos a percorrer cem metros. O cartaz que cobria o expositor dizia: «Quando acabará o sofrimento?»

Sorrisos

A revista britânica de viagens Condé Nast Traveller elegeu os habitantes do Porto como dos «mais sorridentes e acolhedores» da Europa. Soube desta notável distinção através do semanário Expresso . Talvez os leitores da revista britânica, e também os do Expresso, se estejam a interrogar porque diabo sorriem os tripeiros? Compreendo a pergunta. A resposta, porém, é bastante simples. Eu explico. Sorrimos porque somos liberais e acreditamos nas leis do mercado. E com as leis do mercado conseguimos expulsar da cidade uma parte importante dos portuenses. E isso é bom porque muitos de nós não têm dentes. E um sorriso sem dentes não sei o que parece. Não fica bem nas fotografias. Sorrimos porque já ninguém vive na Rua das Flores, na Rua do Almada, no quarteirão da câmara, etc, etc. E isso faz-nos sorrir porque fachadas sem pessoas e com flores de plástico dão cenários muito mais bonitos e instagramáveis . Sorrimos porque não há canto, arcada ou entrada de prédio onde não durma uma pessoa sem

Sábado ao sol

Sentado na esplanada, observo os pardais a empanturrarem-se de queques e torradas, que os turistas deixaram abandonados pelas mesas. Os pardais, enquanto enchem o papo com o repasto, observam divertidos aquele enorme lagarto ao sol, a catar minúsculas migalhas entre as páginas de um livro.

Fechado para obras

Durante muito tempo, os livros da &etc foram impressos no Porto, na Coovaforme (Cooperativa Gráfica de Antero de Quental), que ficava perto de minha casa, no número 197 da Rua Antero de Quental. Quando a gráfica faliu, o espaço foi convertido numa pastelaria, que também vendia pão. Ou padaria, que também vendia bolos. A pastelaria fechou de repente há uns anos. O aviso mal-amanhado que colaram na porta, «Fechado para obras», está amarrotado, desbotado pelo sol e cagado das moscas. Nem livros, nem pão, nem bolos.

Nada mais interessa

Vejo as imagens da enxurrada que varreu a Baixa do Porto por causa das chuvas fortes. Num dos vídeos, há um homem que é arrastado pela água, na Rua Mouzinho da Silveira. A imagem foi captada por alguém com um telemóvel. O homem parece um bocado de plástico a flutuar na corrente. A pessoa que está com o telemóvel, a poucos metros, continua a filmar. Não larga a câmara, não mexe um músculo para ajudar o homem. Continua a filmar, simplesmente. Nada mais interessa.

Tapete vermelho

Sobre o tufado e natalício tapete vermelho que cobre o passeio em frente à farmácia, a noite depôs dois rotundos poios, enormes e castanhos. Parecem dois escaravelhos atacados de gigantismo, demasiado grandes, gordos e pachorrentos para saírem, de livre vontade, do meio do caminho.

Observações avulsas sobre o bonfim #51

Nas freguesias mais orientais há cada vez mais imigrantes. Cruzo-me com eles no metro e autocarros, supermercados e ruas. Não têm muito dinheiro — nota-se —; são novos e bonitos. É o Porto cosmopolita que não vem nas revistas e o resto da cidade desconhece. Talvez tragam com eles a mudança necessária.

Natal dos bombeiros

À entrada do quartel da Constituição, os bombeiros instalaram um velho jipe decorado com luzes, fitas e pendentes de Natal. O carro é puxado por quatro renas de plástico, de tamanho quase real. Sentado no capô, um vigoroso manequim, daqueles que se vêem nas montras das lojas de moda, vestido de Pai Natal. Com a chuva, as barbas deslizaram pelo queixo e pingaram, como um trapo sujo, até ao pescoço. O vento arrancou o nariz vermelho do Rudolfo.