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Papel e tinta

Artigos, crónicas, apontamentos, números, dados, estatísticas, análises das estatísticas, previsões, opiniões sobre as previsões, opiniões sobre as opiniões. E, no entanto, já quase não há tinta a pintar o papel. O que resta é a superfície brilhante e higiénica de um ecrã. Nada mais. O toque dos dedos no papel, o cheiro da tinta, punham-nos em contacto com a matéria do mundo, lembravam-nos que para cada facto existe um abismo de causas e efeitos, de fluxos e refluxos. É preciso sol, chuva, terra e tempo para criar papel. O ecrã é plano, não tem memória nem profundidade. Mas talvez seja a minha imaginação a querer exigir ao papel e à tinta respostas que não existem. Respostas que ninguém tem.

Por mais que limpe o pó, o pó não desaparece. Acumula-se sobre os móveis, os livros, o computador. Avança pelo corredor, entra no quarto, instala-se na sala. Não dá tréguas. Se limpo agora, volta a aparecer daqui a pouco. Ainda mais notório, ainda mais abundante. É como se a casa se revoltasse contra a nossa presença. Como se nos quisesse ver pelas costas. Como se fôssemos o pó que a casa quer limpar.

Espelho

Ainda é possível pensar em certos livros ou filmes como meros exercícios da imaginação? Volto atrás. Tento lembrar-me da primeira vez que vi «O Cavalo de Turim». A tela do cinema era uma tela de cinema. Agora, percebo que era um espelho.

Corcunda

Passei o fim-de-semana à janela. Uma corcunda está a irromper, pouco a pouco, nas minhas costas. Em breve, serei outro. O meu nome mudará para Maria José . E tudo o que farei é escrever uma carta de amor ao serralheiro, cujo fantasma continua a passar todos os dias lá em baixo, na rua vazia.

Anjo exterminador

Sete dias fechado em casa. A impressão é a de que estou dentro da cabeça de Buñuel, simples títere da sua imaginação, actor involuntário de «O Anjo Exterminador».

Pulverizador

Passamos os dias em casa, desconfiados, vigilantes, sem dormir. Andamos atrás do vírus pelas divisões da casa, apontando um pulverizador para o vazio como se fosse um revólver. Verificamos atrás das portas, por cima dos armários, entre os lençóis da cama. Prontos a disparar. Mas o vírus é mais rápido do que a própria sombra. É a própria sombra.

Persistência dos sintomas

O que não conhecemos, assusta-nos. O que não sabemos explicar, assusta-nos. O que não conseguimos prever ou dominar, assusta-nos também. Aquilo que é assusta-nos tanto como aquilo que não é. O que não foi é tão assustador como o que podia ter sido. A dúvida é sempre mais forte do que a certeza. Os factos podem ser tão assustadores como as impressões de certos sonhos em noites agitadas. Por isso, criámos a literatura e a arte. Por isso, criámos deus. Para o alívio dos sintomas, tomamos um ou outro, ou vários em simultâneo, segundo a dose que nos convém.

Domingo

O bairro está deserto. As gaivotas desceram dos telhados e ocuparam os passeios. Andam para a frente e para trás como turistas pasmados. Conseguimos ouvir o melro e o vento a sacudir os ramos da magnólia. Um caracol pode atravessar a rua sem perigo.

Quarentena

Fechados em casa, de quarentena, passamos uma parte da noite a ver Beuys , que passou na televisão. Ruas cheias de gente, manifestações, ocupações, performances em espaços fechados, um debate com críticos de arte e académicos numa sala a abarrotar, toda a gente a fumar, a partilhar copos, Beuys alagado em suor. Em menos de uma semana, tudo isto parece ter-se transformado em arqueologia. Provas de um tempo longínquo. Foi ontem.