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Mensagens

S/ data, s/ título

Rua Miguel Bombarda, Porto.

Enfim sós!

Entusiasmados, um bonito rapaz e uma bonita rapariga casaram-se. Depois da cerimónia, enfim sós! , sentados em confortáveis cadeiras à frente um do outro, ficaram a olhar-se, calados, e morreram de pavor. León Bloy, Histórias desagradáveis . Tradução de Aníbal Henriques.

Um tremendo segredo

Vai para a cama e ressona, pois não tardarão a entrar no teu quarto aqueles que dormem na rua. Claro que irás fingir não dar pela sua presença. Claro que na manhã seguinte dirás rindo à tua mulher: - Tive um estranho pesadelo. Mas no ar permanece o seu hálito e nos teus ouvidos os seus queixumes, e o frémito dos seus corpos no teu corpo. Sabes isso muito bem; todos sabem isso e calam-no. É um tremendo segredo. Francisco Tario, Equinócio .  Próximo sábado, 27 de Junho, 17h00, no Gato Vadio.

Próximo sábado, 27 de Junho, pelas 17h00

Última sessão da 4.ª Temporada das Leituras do Gato Vadio. Dedicada ao livro "Equinócio" , a obra-prima do autor mexicano Francisco Tario. No próximo sábado, 27 de Junho, pelas 17h00, no Gato Vadio (rua do Rosário, 281, Porto). O convidado é o actor Daniel Macedo Pinto. O cartaz é da autoria de Luís Nobre, da dupla Lina&Nando .

Palco

O macaco-de-nariz-pontiagudo sai de cena e entra o filósofo. O filósofo faz trinta minutos de abdominais, flexões e polichinelos. Abandona o palco, muito satisfeito com a sua condição física, e entra o padre. Um homem maravilhoso, maravilhoso. Desaparece e entra o comediante. Este coça duas ou três vezes a orelha direita com o indicador, acende um cigarro e deita-se no chão durante alguns minutos. O comediante, com licença do leitor, está um pouco bêbado. - Eu dou licença – diz o leitor. Pouco depois o comediante sai, um tanto a custo, e entra o economista, que traja limpa e admiravelmente. O economista vai-se embora quando entram as batatas. As batatas dizem coisas deste teor: “Desculpem, minhas senhoras e meus senhores, mas não passamos de pobres batatas. A natureza não foi pródiga no génio e nas capacidades que nos deu. Em todo o caso, e sem querer perturbar o frágil equilíbrio do cosmos, e também com a devida licença do leitor, gostávamos de dizer umas quantas verdades.” - Eu do

Gago apaixonado

Mu-mu-mulher, em mim fi-fizeste um estrago Eu de nervoso estou-tou fi-ficando gago Não po-posso com a cru-crueldade da saudade Que que mal-maldade, vi-vivo sem afago Tem tem pe-pena deste mo-moribundo Que que já virou va-va-va-va-ga-gabundo Só só só só por ter so-so-sofri-frido Tu tu tu tu tu tu tu tu Tu tens um co-coração fi-fi-fingido Mu-mu-mulher, em mim fi-fizeste um estrago Eu de nervoso estou-tou fi-ficando gago Não po-posso com a cru-crueldade da saudade Que que mal-maldade, vi-vivo sem afago Teu teu co-coração me entregaste De-de-pois-pois de mim tu to-toma-maste Tu-tua falsi-si-sidade é pro-profunda Tu tu tu tu tu tu tu tu Tu vais fi-fi-ficar corcunda! Noel Rosa.

Juan Rodolfo Wilcock

Wilcock escribía dos columnas en “Il mondo”, una con su nombre y otra con el seudónimo Mario Campanari. Polemizaban entre ellos con una furia absoluta, durante varios números. Las cosas más sardónicas sobre Wilcock siempre las dijo él mismo. (…) Juan Rodolfo Wilcock murió cuatro años después: sufrió un infarto mientras leía, recostado en un sillón, L’infarto cardiaco, de Alberto Saponaro. Aqui.

Arreda!

Neste comenos, visitou-os [a Morgada de Romariz e o marido] um meu conhecido de Famalicão. Ao erguer do pano, saiu de lá, e entrou no meu camarote. Foi ele quem me disse o nome das duas pessoas, acrescentado: - Ali, onde a vê, tem romance; dá matéria para dois tomos... - Picarescos? Não me servem... Eu quero filosofia: os meus leitores querem filosofia, percebe o senhor? - É o que ela tem mais que dar. - Ora essa!... O senhor sabe que ela tem isso? Queira apresentar-me.. - Deus me defenda... Eu disse à morgada que você era romancista... - E ela que disse? - Riu-se. - Riu-se?! É boa! E o marido... - O marido disse: Arreda! Camilo Castelo Branco, A Morgada de Romariz .
Elijah Hinsdale Burritt,  The geography of the heavens , 1847.

O riso

Plantado no meio do palco, o actor não conseguia dizer uma só palavra sem que fosse assaltado por uma onda incontrolável de riso. O actor tentava dizer a palavra “angústia” e não conseguia parar de rir. Tentava dizer a palavra “morte” e ria, ria, ria, acometido de um riso tremendo, monstruoso, desmedido. Quando por fim conseguiu articular a palavra “flor”, o actor morreu no meio das mais atrozes convulsões, sufocado pelo riso.

Os píncaros da glória

O público acorre em massa para ver o mágico. A sala esgota, não cabe uma mosca. Mal se respira. O mágico entra em palco no meio de uma torrente avassaladora de aplausos e inicia o espectáculo com um número simples: o velho truque de fazer desaparecer pessoas. Começa por fazer desaparecer os espectadores da primeira fila, um após outro. Depois, os da segunda fila, desta vez três ou quatro em simultâneo. Em seguida faz desaparecer todos os espectadores da terceira fila, da quarta, da quinta e assim sucessivamente, até não restar ninguém. É um truque simples, sem nada de assombroso, mas eficaz e funciona sempre muito bem. Só então, com a sala totalmente vazia, o mágico apresenta os truques mais complexos. Aqueles que o tornaram famoso e alçaram aos píncaros da glória.

Um Concerto Triunfal

Um conjunto de música de câmara, como se costuma dizer, famoso por apenas tocar música antiga em instrumentos da época e cujo reportório se limita a Rossini, Frescobaldi, Vivaldi e Pergolesi, deu um concerto num velho castelo nas margens do Attersee e aí conheceu o maior sucesso da sua carreira. Os aplausos só terminaram quando o conjunto de música de câmara não encontrou mais nenhum número extra-programa para tocar. Não foi senão na manhã seguinte que se revelou aos músicos que tinham tocado numa instituição de surdos-mudos. Thomas Bernhard, tradução de Myrna Minkoff, texto sonorizado por Pedro Coelho para a rubrica “Ostra”, emitida na Antena 2 Próximo sábado, 30 de Maio, pelas 17h00, no Gato Vadio.

Dimitrije cai e volta a cair

Uma coisa é certa: alguém devia impedir Dimitrije de sair de casa. Sempre que atravessa a porta de entrada, escorrega e cai. Apesar disso, e contrariando as mais elementares regras da prudência, insiste em vestir o casaco, pôr o chapéu e sair. Nunca deixa de ir à rua. Ontem caiu quatro vezes. Anteontem, seis. Na primeira semana de Maio deve ter caído umas vinte vezes. Alguém devia impedi-lo de sair de casa. Mas quem? É uma coisa muito chata porque se magoa com frequência. Tem feridas nas pernas, nos joelhos, nos braços, nas mãos, o nariz partido, a cabeça rachada, o queixo aberto, quase todos os dentes perdidos. Dimitrije cai e volta a cair. O casaco rasga nas mangas, o chapéu voa para longe. Fora de casa, por mais cuidado que tenha, escorrega sempre em qualquer coisa. Muitas vezes escorrega em objectos tão insignificantes como uma folha de papel, por exemplo. É realmente muito chato. Além disso, é monótono. Todas as quedas, todas as feridas, fracturas, nódoas negras, esfoladelas, c

Assino por baixo, se me é permitido

Quando ainda estava em Londres, fui surpreendentemente nomeado vogal, em representação do Primeiro Ministro, da Comissão da Língua portuguesa ou lá como se chamava, sendo chamado a pronunciar-me sobre o Acordo. Votei contra e dei as minhas razões, tendo o cuidado de não medir as palavras… Tenho escrito frontalmente contra o acordo e assinado todas as petições contra o dito. O problema é a profunda iliteracia e cobardia dos deputados que insistem em implementar este aborto, devido ao lobby forte dos editores oportunistas que se apressaram a fabricar manuais e dicionários, seguindo o (des)acordo, contra o que tudo recomendava. Agora choram por causa do 'prejuízo' que traria a abolição de obsceno COISO (que a inefável Edite Estrela defende com argumentos de sopeira, sem desprimor para as sopeiras, que já não há…) Este acordo, filho espúrio do Malaca Casteleiro, meu colega da Academia e um dos homens mais burros e obstinados, que há debaixo da Via Láctea (burro e gago: a tempestade

Próximo sábado, 30 de Maio, pelas 17h00

 Cartaz de Luís Nobre, da dupla Lina&Nando .

Inversão

Embora eu sempre tenha odiado jardins zoológicos e na verdade achado suspeitas as pessoas que os visitam, não escapei de ir certa vez ao zoológico de Schönbrunn e, a pedido de meu acompanhante, um professor de teologia, deter-me diante da jaula de macacos para observar aqueles aos quais ele, meu acompanhante, alimentava com a comida que, para esse fim, tinha levado no bolso. O tempo passou e o professor de teologia que me pedira que fosse com ele a Schönbrunn, um ex-colega da faculdade, já havia dado aos macacos toda a comida que trouxera consigo quando, de repente, os próprios macacos, por sua vez, puseram-se a coletar a comida que se espalhara pelo chão e, através das grades da jaula, ofereceram-na a nós. O professor de teologia e eu ficamos tão chocados com o súbito comportamento dos macacos que, no mesmo instante, demos meia-volta e partimos de Schönbrunn pela primeira saída que encontramos. Thomas Bernhard, O imitador de vozes . Tradução de Sergio Tellaroli.

Um demolidor de histórias

Sou um demolidor de histórias, sou o demolidor de histórias típico. Nos meus textos, se uma anedota se esboça, ou se mal vejo aparecer de longe, atrás de uma colina de prosa, o vago contorno de uma história, liquido-a imediatamente. Acontece o mesmo com as frases: sinto logo ganas de matar frases inteiras assim que vejo que poderiam formar-se. Thomas Bernhard, Trevas . Tradução de Ernesto Sampaio.