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Dimitrije cai e volta a cair

Uma coisa é certa: alguém devia impedir Dimitrije de sair de casa. Sempre que atravessa a porta de entrada, escorrega e cai. Apesar disso, e contrariando as mais elementares regras da prudência, insiste em vestir o casaco, pôr o chapéu e sair. Nunca deixa de ir à rua. Ontem caiu quatro vezes. Anteontem, seis. Na primeira semana de Maio deve ter caído umas vinte vezes. Alguém devia impedi-lo de sair de casa. Mas quem?
É uma coisa muito chata porque se magoa com frequência. Tem feridas nas pernas, nos joelhos, nos braços, nas mãos, o nariz partido, a cabeça rachada, o queixo aberto, quase todos os dentes perdidos. Dimitrije cai e volta a cair. O casaco rasga nas mangas, o chapéu voa para longe.
Fora de casa, por mais cuidado que tenha, escorrega sempre em qualquer coisa. Muitas vezes escorrega em objectos tão insignificantes como uma folha de papel, por exemplo. É realmente muito chato. Além disso, é monótono.
Todas as quedas, todas as feridas, fracturas, nódoas negras, esfoladelas, contusões, ossos partidos, escoriações, arranhadelas, tudo, tudo isto, tem desfigurado Dimitrije. Ele que tinha uma figura tão elegante e graciosa. Neste momento, mal parece um ser humano. Faz lembrar outra criatura qualquer. Uma espécie de matéria sem forma, esquinada, torcida, arrastando-se aos bocados, para cá e para lá, de casaco e chapéu na cabeça. O próprio casaco e também o chapéu parecem coisas diferentes, monstruosas.
Mas Dimitrije olha para o relógio e sibila, já quase sem lábios e só com metade da língua: “São horas.” E veste o casaco, põe o chapéu e sai de casa. E escorrega e cai e fere-se uma e outra vez. E os motivos para tão longa e persistente teimosia, julgo eu, ficarão para sempre por esclarecer.

Publicado no Porto24, página dos Cronistas do Bairro.

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