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Mensagens

Comichão no nariz

Uma aranha de nome Marie estava a embrulhar na sua teia uma mosca rechonchuda para oferecer de presente ao seu mais-que-tudo. A mosca estava muito satisfeita por poder servir Marie e o seu amor de inúmeras patas, e fazia os possíveis para estar à altura das circunstâncias: mantinha a boca calada e as reluzentes asinhas fechadas. Mas a teia fazia-lhe comichão no nariz e ela não conseguia parar de espirrar. A aranha dava voltas e mais voltas à mosca, envolvendo-a em teia, mas sempre que esta espirrava, o embrulho desfazia-se. A pobrezinha recomeçava então uma e outra vez o trabalho. E a mosca espirrava e voltava a espirrar. - Ah, não! – gritou Marie. – Embrulhar uma mosca é tão difícil como roer a cauda peluda de um elefante. E a mosca espirrou de novo.

Chegou um novo volume da Colecção Avesso

"Quartos alugados", novo livro de contos de Alexandre Andrade e quinto volume da Colecção Avesso , já está disponível nas livrarias, em www.exclamacao.pt e no pavilhão da editora Exclamação, na Feira do Livro do Porto (até 20 de Setembro, nos Jardins do Palácio de Cristal). Este volume, que tem prefácio de Cristina Fernandes e design de Lina&Nando , será apresentado no dia 19 de Setembro, pelas 19h00, na Biblioteca Almeida Garrett, no Porto. "Quartos alugados" sucede a "Notícias em três linhas", de Félix Fénéon, volume traduzido por Manuel Resende e um dos livros do ano de 2014 , segundo o suplemento Ípsilon, do jornal Público. Mais informações sobre estes e os próximos volumes da Colecção Avesso, no blogue da colecção (clicar aqui) .

Excerto de um email enviado por um amigo

No outro dia tive um sonho engraçado.   O rei François VI chamou os seus conselheiros e disse: «Há vinte anos, fui agraciado com um título papal e a agência Reuters não deu notícia. Vão buscar o correspondente da Reuters e cortem-lhe a cabeça.» Assim se fez. Infelizmente, veio a descobrir-se pouco depois que, de facto, a agência Reuters tinha noticiado o caso. Este facto foi funesto, porque a credibilidade do rei nunca mais se recompôs e a casa real perdeu o lustre que tanto custara a granjear ao longo das gerações.

Autor anónimo, s/d

Rua de Ceuta, Porto

Vida religiosa

Era uma vez um homem que estava preso ao céu por um fio. Se o fio era real ou apenas aparente, não me atrevo a afirmá-lo, visto não possuir nenhuma pedra-de-toque que me permita distinguir, sem margem para dúvidas, o verdadeiro do falso. O que me parece indiscutível é que não se encontra um homem assim todos os dias, nem mesmo em Inglaterra. Ora, dadas as circunstâncias, a sua vida era tudo menos fácil. Tropeçava a todo o momento, braços e pernas ensarilhavam-se, cresciam nós incómodos em volta do corpo. Por vezes, à volta do pescoço. Apesar disso, não mostrava o mais leve sinal de impaciência. Na verdade, ser-lhe-ia muito fácil cortar o fio. Com uma tesoura, por exemplo. Até que. Até que, dizia eu, e este “até que” é tão importante que lhe dedicaremos todo um parágrafo: o seguinte. Até que um dia, durante uma forte ventania, o fio partiu. Pela primeira vez, fugiu-lhe da boca um palavrão. Caiu de joelhos, desfez-se em lágrimas. Ele, dantes tão tranquilo, achava-se agora possuído po

Além do mais

Cortés e Montezuma caminham lado a lado junto ao embarcadouro. «Gosto especialmente do Espírito Santo. Enquanto ideia», declara Montezuma. «O outro Deus, o Pai, é também...» «Um Deus, três Pessoas», emenda Cortés delicadamente. «O facto de ser necessário sacrificar o Filho», prossegue Montezuma, «parece-me errado. Parece-me que deveriam fazer-se sacrifícios ao Filho. Além do mais», detém-se e bate no peito de Cortés com o indicador moreno, num gesto significativo, «onde está a Mãe?» Donald Barthelme, Cortés e Montezuma . Tradução de Paulo Faria.

Quem foi Pierre Aimard?

Pierre Aimard foi um monge que, no ano de 995, descobriu uma fórmula simples e universal de escrever poemas. Achando-se mergulhado no meio de graves cogitações, Aimard olhou para a sua mão esquerda. Ainda hoje as pessoas fazem o mesmo: olham para as mãos quando não sabem o que fazer. De súbito, acudiu-lhe uma ideia grandiosa. Na mão esquerda cabiam perfeitamente dezanove palavras, uma em cada falange – eram catorze –, e outra na raiz de cada dedo; juntas somavam dezanove. A palavra número vinte usava-se tão raramente que Pierre a deixou a flutuar sobre a polpa do dedo médio. A partir desse momento, qualquer pessoa pôde conceber poemas na própria mão. Por meio da combinação das diferentes palavras, as possibilidades são inesgotáveis. Há mais de mil anos que se fazem poemas desta maneira, isto é, à maneira engenhosa de Pierre Aimard. Tão normal como o pão nosso de cada dia.

O bigode

1. Andras nunca tinha deixado crescer o bigode. 2. Andras decidiu deixar crescer o bigode. 3. O bigode de Andras começou a crescer. 4. Andras deixou de conseguir dizer certas palavras. 5. O bigode de Andras continuou a crescer. 6. Andras dizia menos palavras. 7. O bigode de Andras crescia para os lados, para cima e para baixo. 8. Às vezes, Andras emitia sons que se assemelhavam a palavras. 9. Todos os dias, o bigode de Andras crescia mais um pouco. 10. Andras esforçava-se por emitir sons que se assemelhassem a palavras. 11. O bigode de Andras era longo e farfalhudo. 12. Andras deixou de falar. 13. O bigode de Andras continuou a crescer. 14.

Octavo

Começou a contar vagarosamente pelos dedos, uns dedos longuíssimos e muito finos, de uma brancura de marfim: primo, a Gula; secundo, a Avareza; tertio, a Luxúria; quarto, a Ira; quinto, a Inveja (mudou de mão); sexto, a Preguiça; septimo, a Soberba; octavo, a vontade de coçar aquele sítio.

Um carvalho e duas tílias

Era uma vez e várias vezes um homem que mudava de cor segundo as condições meteorológicas. A pele exibia um inconfundível azul-celeste em dias de sol, era turquesa quando fazia muito calor, damasco com nuvens escuras, vermelho violeta com chuva, ocre durante uma tempestade, ametista quando não fazia sol nem chuva, cinza ardósia com vento forte, lilás com vento fraco, jade quando soprava apenas uma brisa suave, púrpura com tempo de nevoeiro, carmesim em alturas de trovoada, índigo com granizo, terracota em manhãs de geada, e por aí adiante. O homem consultou médicos, clínicos, especialistas, terapeutas, curandeiros, mezinheiros, feiticeiros e charlatães. Tudo em vão. Experimentou infindáveis cremes, óleos, loções, cosméticos, pílulas, ampolas, pastilhas e comprimidos. Tomou banhos quentes e frios, de água doce e salgada, ao romper da aurora, ao meio-dia e ao crepúsculo, com pétalas de flores raras do Tibete, corais do mar vermelho, algas do rio amazonas. E depois destas e de muitas out

Constipação

John Dunstable foi o príncipe, a glória e a luz da música. O primeiro a libertá-la das algemas do canto gregoriano. No decurso dos séculos, a música tinha-se petrificado pouco a pouco. As tonalidades religiosas já não podiam dar muito mais. As canções mundanas despertavam muito mais interesse do que as velhas melodias. Dunstable, porém, rompeu com as tonalidades religiosas. Para ele só se impunham o modo maior e menor (dur e moll), que tanto agradavam ao povo. Prescindiu da vacuidade das quartas e quintas e optou pelos acordes do trítono. Fez da música uma arte formosa, livre e mundana. Restituiu-lhe toda a sua primitiva vivacidade. Por fim, apanhou uma terrível e incomodativa constipação, e tudo o que construíra até aí se desmoronou como um castelo de cartas.

Risadinhas maldosas

Dizia-se que quem olhasse directamente para uma Górgona transformava-se em pedra. Ora, Petch Massudi, que era muito distraído, pousou os olhos sem querer em Esteno*, a mais terrível das Górgonas. Transformou-se imediatamente em árvore. Mãos, braços, pernas, cabeça, tudo transformado em madeira, casca e folhas. Um pardal que assistira a tudo, deu três voltas no ar, aproximou-se com um ar estudadamente amigável e soltou uma bosta inaugural sobre um dos raminhos mais elegantes de Petch Massudi. Depois, com a língua de fora, voou para longe, gingando, entre risadinhas maldosas. * Na realidade, os seus olhos pousaram em Euríale, que andava por ali a colher cogumelos. Mas não vale a pena insistir nesse ponto.

Coincidência estatística

Um recente estudo do Ateliê Parisense de Urbanismo registrou o fechamento de 83 livrarias parisenses entre 2011 e 2014, uma queda de 10% do total. Por outro lado, em uma irônica coincidência estatística, a mesma pesquisa apontou que o maior crescimento no comércio se verificou na venda de óculos: o número de óticas aumentou em 18% no período, com a abertura de mais 138 lojas na capital. Aqui.
William Archer paying a humble visit to Henrik Ibsen. Max Beerbohm, 1904.