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Aquilo em que ninguém reparara antes

Ninguém sabia de onde viera nem como chegara à cidade. Apareceu aqui um belo dia e foi tudo. O mais certo é ter caído das nuvens ou brotado do chão como uma erva rara. O fio do mistério começava justamente neste ponto. Passava os dias e as noites sentado nas esplanadas a enrolar cigarros e a espiar vagamente o plácido curso das horas. Fazia lembrar – que os grandes mestres da literatura me perdoem – um morno e indolente gato ao sol. De vez em quando pegava num livro, sem intenção de ler, abria-o ao acaso e punha-o logo de parte. Depois, engolia uma cerveja sem parar para respirar e ficava a olhar saudosamente para o copo vazio. Metia conversa, gracejava, contava anedotas no melhor dos ânimos. E quando era convidado para uma partida de cartas, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos empregados. Penso que tudo isto é o que se pode chamar um procedimento esquisito. Intrigados, muitos de nós começaram por conceber teorias fantasistas e abracadabrantes, rejeitando um
Jean Paul, retratado por Heinrich Pfenniger, 1797-1798.

Jean Paul, autor de Maria Wutz de Auenthal, autor de Borges, autor de Pierre Menard, autor do Quixote.

O tal facto importante que, ao que parece, é essencial conhecer antecipadamente, é o seguinte: Wutz tinha - não comprado, como é que ele a poderia ter comprado? - mas escrito, pela sua própria mão, toda uma biblioteca. O seu tinteiro foi a sua tipografia de bolso. Qualquer produto novo da feira [do livro], cujo título fosse descoberto pelo mestre-escola [Wutz], estava, por assim dizer, de imediato escrito ou comprado. Pois a verdade é que se lançava imediatamente ao trabalho, aprontava o produto e oferecia-o à sua notável colecção de livros que, tal como as dos pagãos, era exclusivamente composta por manuscritos.  (…) Depois de ter enchido desta maneira, ao longo dos anos, a sua estante, com o que ele próprio escrevera e estudara, acabou por acreditar que os seus manuscritos eram os autênticos textos canónicos, enquanto os impressos não passavam de simples contrafacções dos seus. Queixava-se unicamente de não poder compreender - ainda que lhe oferecessem um bailado - a razão que leva

Devia ser papéis

"Mas porque está ele assim [magro, pálido e sem cabelo]?" disse Anna Pávlovna. "Deve ser de escrever, senhora." "Escrevia muito?" "Muito. Todos os dias." "E o que escrevia ele? Papéis?" "Devia ser papéis." "E porque não o impedias?" "Tentei, senhora: 'Não fique aí sentado, Alexándr Fiódorytch', dizia-lhe eu, 'vá dar uma volta. Faz bom tempo, muitos cavalheiros vão passear. Escrever para quê? Dá cabo dos pulmões e a mamã fica zangada...'" "E ele o quê?" "Ele dizia: 'Põe-te a andar! És maluco!'" Ivan Goncharov, A história de sempre . Tradução de Manuel de Seabra.

Problema

A dispara uma flecha na direcção de B . Exactamente a meio da trajectória, a flecha faz um desvio de 106º e atinge C no peito. De um ponto de vista matemático, como é isto possível? Justifique a sua resposta apresentando os respectivos cálculos.

Se isso lhe agrada, leitor, por que não?

Uma mulher. Um homem. A mulher tem óculos. O homem tem um guarda-chuva. Se isso lhe agrada, leitor, por que não? A mulher tem óculos e uma saia de renda. O homem tem um guarda-chuva e cabelo à escovinha. Se isso lhe agrada, leitor, por que não? A mulher tem óculos, saia de renda e um cigarro entre os dedos da mão esquerda. O homem tem um guarda-chuva, cabelo à escovinha e um cachimbo na mão direita. Se isso lhe agrada, leitor, por que não? A mulher tem óculos, saia de renda, um cigarro entre os dedos da mão esquerda e uma barbatana em lugar da perna direita. O homem tem um guarda-chuva, cabelo à escovinha, um cachimbo na mão direita e uma gaveta de mesa-de-cabeceira em lugar da boca. Se isso lhe agrada, leitor, por que não? A mulher tem óculos, saia de renda, um cigarro entre os dedos da mão esquerda, uma barbatana em lugar da perna direita e pedala tranquilamente pelos campos verdes numa bicicleta azul. O homem tem um guarda-chuva, cabelo à escovinha, um cachimbo na mão direita, uma g

E afinal as respostas não surgem

Você coloca perguntas, o leitor pensa ir encontrar as respostas, e afinal as respostas não surgem... AP - Isso faz parte integrante do meu modo de comunicar (...) Os meus textos têm muitas vezes um carácter enigmático, parecem não ter saídas. Isso é propositado. As saídas é o leitor que as tem que encontrar, eu não lhas posso fornecer. Senão caímos sempre no mesmo. Na História... A História é uma sequência terrível de pessoas a darem soluções aos outros (...). Seria um abuso da minha parte dizer como é que é bom, como se deve fazer... Alberto Pimenta, fragmento de entrevista incluído em Metamorfoses do video . Sábado, 2 de Julho, pelas 17h00, no Gato Vadio.

Balada

(...) Artur de Souza Gargo ficou também conhecido pelo seu grande chiste e espírito. Assim, conta-se que uma noite, numa recepção, estando seu filho Nuno à janela, a contemplar os astros por um óculo que lhe fora oferecido por sua tia Manuela, Artur Gargo veio por trás, pé ante pé, e dando-lhe um piparote que o fez bater com o óculo no olho, disse: «Agora é que tu viste as estrelas!» A hilariedade foi geral; uma vez mais Artur de Souza Gargo tinha dado mostras do seu sadio humor, tão português. A família ainda hoje gosta de contar o episódio e Nuno, o alvejado, é o primeiro a rir gostosamente, ajeitando a pala do olho. Alberto Pimenta, Metamorfoses do video . Sábado, 2 de Julho, pelas 17h00, no Gato Vadio.

Próximo sábado, 2 de Julho, pelas 17h00

No próximo sábado, 2 de Julho, concluimos mais um ciclo, o quinto, das Leituras do Gato Vadio. Haverá uma sessão-festa, com oferta de rebuçados e lambarices à tripa-forra, dedicada a Alberto Pimenta. A convidada é a Leonor Figueiredo e a imagem da leitura é do Luís Nobre, da dupla Lina&Nando . A entrada, como sempre, é livre.

Incomoda-me um pouco ter de escrever isto

Um homem acorda a meio da noite. Senta-se na beira da cama, coça as costas, resmunga qualquer coisa, tacteia o chão com os pés à procura das pantufas. Encontra as pantufas ao fim de sete segundos, mais coisa menos coisa, ajeita-as com a pontinha dos dedos e calça-as. Dirige-se à porta e, de repente, perde-se na escuridão do quarto. De vista curta e sem os óculos, começa a caminhar sem distinguir coisa alguma. Avança durante longos minutos, incapaz de encontrar o caminho. É como se levasse um tempo incomensurável a atravessar o quarto. “Estranho”, pensa modestamente. Há várias horas que caminha no escuro, tentando descobrir uma saída ou o sentido oculto de tudo aquilo. Não consegue vislumbrar nada além da profunda treva à sua volta. O cansaço obriga-o a abrandar o passo. Exausto, descalça as pantufas, deita-se no chão e tenta adormecer rapidamente para que a noite passe depressa. Os nervos, no entanto, mantêm-no acordado. Fecha as pálpebras com mais força; o sono não vem. Ergue-se de no

O homem estava a vender rosas no Areeiro

- Já te contei a história do homem que estava a vender rosas no Areeiro? - Não mana, não contaste. - O homem estava a vender rosas no Areeiro e ao lado estava outro homem a vender fruta. O da fruta já há um pedaço que dizia e repetia, virado para o ar, não para o outro, dizia e repetia: «Estou aqui, estou-te a ir à cara!» E o outro nada, como se aquilo não fosse com ele. Isto durou um bom pedaço, durante um bom pedaço. Até que de repente, quando menos se esperava, o vendedor de rosas disse para o outro: «Fazias melhor se me fosses ao cu!» Alberto Pimenta, Sex Shop Suey. Sábado, 2 de Julho, pelas 17h00, no Gato Vadio.
Ivan Goncharov.

Uma coisa tão de senso comum

Enquanto o tio falava, Alexándr mexia num maço de papéis. "O que é isso?" Alexándr esperara com impaciência aquela pergunta. "Isto… Queria mostrar-lhe… uns versos. Como já mostrou interesse…" "Não me lembro de ter mostrado qualquer interesse…" "Bem vê, tio, eu acho que o emprego é uma ocupação árida, em que não se põe a alma, e a alma tem sede de se exprimir, de partilhar com o nosso próximo os sentimentos e ideias, que a inundam…" "Bem, e depois?" perguntou o tio, com impaciência. "Sinto que a criação é a minha vocação…" "Ou seja, além do emprego, queres fazer qualquer coisa mais - é assim que devo interpretar o que dizes? Pois é muito louvável. E queres fazer o quê? Literatura?" "Sim, tio, queria pedir-lhe que se alguma vez tiver oportunidade de publicar qualquer coisa…" "E tens a certeza de que tens talento? Sem isso, serás um mau trabalhador na arte e de que serve? Se tens talento, então

Maçãneidade

Quando [Cézanne] dizia aos seus modelos: «Sejam uma maçã! Sejam uma maçã!», exprimia o que é prólogo da queda; não só a dos idealistas, tanto os jesuítas como os cristãos, mas a do colapso de toda a nossa forma de consciência substituindo-a por outra. Se o ser humano fosse essencialmente uma Maçã, como era para Cézanne, caminharíamos em direcção a um novo mundo de homens: um mundo com muito pouco para dizer, com homens que conseguiriam, apenas com o seu lado físico e uma verdadeira ausência de moral, manter-se tranquilos. Era o que Cézanne queria deles: «Sejam uma maçã!» A partir do momento em que o modelo começasse a impor a sua personalidade e a sua «mente» passasse a ser um lugar-comum, uma moral, ele sabia muito bem que iria ver-se obrigado a pintar um lugar-comum. A única parte da personalidade que não era banal, conhecida ad nauseam e um vivo lugar-comum, era a sua maçãneidade. O corpo e até mesmo o sexo eram conhecidos até à náusea, eram o connu! connu!, a cadeia infindável da