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Espíritos cultivados

Um espírito cultivado como esse não tem verdadeiramente interesse para mim. Admiro-o, aprecio tous les soins et les peines que foram necessários para o produzir - mas deixa-me fria. Afinal de contas, a aventura está terminada. Agora já não resta nada a fazer senão podar, aparar, ligar as ramadas - e todos estes labores são um pouco deprimentes. Não, não, os espíritos que amo devem conservar ainda certos cantos selvagens, a desordem de um pomar onde os sombrios abrunhos roxos chovem sobre a erva pesada, um pequeno bosque crescendo ao abandono, a possibilidade de uma cobra ou duas (cobras verdadeiras…), um lago a que ninguém sondou a profundidade e atalhos, atalhos recamados dessas pequenas flores plantadas pelo espírito… É necessário também que tenha esconderijos verdadeiros e não menos artificiais, belvederes ou labirintos. Nunca encontrei um espírito cultivado que não tivesse alamedas arborizadas. E eu detesto, abomino as alamedas arborizadas. Katherine Mansfield, Diário . Traduçã

Atum, cachucho e cavala

António Maria de Oliveira Bello (OLLEBOMA), Culinária Portuguesa , Edição do Autor, Lisboa, S.d.

Aquilo em que ninguém reparara antes

Ninguém sabia de onde viera nem como chegara à cidade. Apareceu aqui um belo dia e foi tudo. O mais certo é ter caído das nuvens ou brotado do chão como uma erva rara. O fio do mistério começava justamente neste ponto. Passava os dias e as noites sentado nas esplanadas a enrolar cigarros e a espiar vagamente o plácido curso das horas. Fazia lembrar – que os grandes mestres da literatura me perdoem – um morno e indolente gato ao sol. De vez em quando pegava num livro, sem intenção de ler, abria-o ao acaso e punha-o logo de parte. Depois, engolia uma cerveja sem parar para respirar e ficava a olhar saudosamente para o copo vazio. Metia conversa, gracejava, contava anedotas no melhor dos ânimos. E quando era convidado para uma partida de cartas, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos empregados. Penso que tudo isto é o que se pode chamar um procedimento esquisito. Intrigados, muitos de nós começaram por conceber teorias fantasistas e abracadabrantes, rejeitando um
Jean Paul, retratado por Heinrich Pfenniger, 1797-1798.

Jean Paul, autor de Maria Wutz de Auenthal, autor de Borges, autor de Pierre Menard, autor do Quixote.

O tal facto importante que, ao que parece, é essencial conhecer antecipadamente, é o seguinte: Wutz tinha - não comprado, como é que ele a poderia ter comprado? - mas escrito, pela sua própria mão, toda uma biblioteca. O seu tinteiro foi a sua tipografia de bolso. Qualquer produto novo da feira [do livro], cujo título fosse descoberto pelo mestre-escola [Wutz], estava, por assim dizer, de imediato escrito ou comprado. Pois a verdade é que se lançava imediatamente ao trabalho, aprontava o produto e oferecia-o à sua notável colecção de livros que, tal como as dos pagãos, era exclusivamente composta por manuscritos.  (…) Depois de ter enchido desta maneira, ao longo dos anos, a sua estante, com o que ele próprio escrevera e estudara, acabou por acreditar que os seus manuscritos eram os autênticos textos canónicos, enquanto os impressos não passavam de simples contrafacções dos seus. Queixava-se unicamente de não poder compreender - ainda que lhe oferecessem um bailado - a razão que leva

Devia ser papéis

"Mas porque está ele assim [magro, pálido e sem cabelo]?" disse Anna Pávlovna. "Deve ser de escrever, senhora." "Escrevia muito?" "Muito. Todos os dias." "E o que escrevia ele? Papéis?" "Devia ser papéis." "E porque não o impedias?" "Tentei, senhora: 'Não fique aí sentado, Alexándr Fiódorytch', dizia-lhe eu, 'vá dar uma volta. Faz bom tempo, muitos cavalheiros vão passear. Escrever para quê? Dá cabo dos pulmões e a mamã fica zangada...'" "E ele o quê?" "Ele dizia: 'Põe-te a andar! És maluco!'" Ivan Goncharov, A história de sempre . Tradução de Manuel de Seabra.