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Histórias de abandono e fúrias

Delia, solteira, sem filhos. No dia do seu 45º aniversário, Amalia aparece morta na praia. Delia regressa a Nápoles para o enterro da mãe e para ajustar contas com os fantasmas do passado. Talvez por ser desenhadora, anda de um lado para o outro, a pé, de autocarro, de elevador, como numa tela de Chagall. Ferrante enche as páginas de cores, movimentos acrobáticos, sons, cheiros, lágrimas -- às vezes é difícil aguentar a leitura pois é tudo demasiado sensorial, como se a violência, até aí mantida em segredo, se materializasse em ruídos e borrões. A história de Olga é a maior e a mais claustrofóbica. Olga tem 38 anos, dois filhos pequenos. Quando o marido a abandona, perde o chão, perde a ligação às pessoas e às coisas, cai numa abstração um bocado idiota. Um dia fica trancada em casa com o filho doente e o cão moribundo; é verão, a cidade e o prédio estão desertos, os telefones não funcionam, as formigas invadem o apartamento, tudo se fecha em seu redor. Consciente da queda e do peri

As boas práticas da arte

LEAL: Ah, caro Truão, o bom gosto está em vias de se extinguir... TRUÃO: Por favor, deixe o bom gosto em casa, que quase o pôs a mendigar; é uma utopia que enche a cabeça, mas não a bolsa. (...) LEAL (suspirando) Infelizmente, já tive essa experiência. TRUÃO Já que não a quer repetir, faça como os outros. Exiba uma tabuleta vistosa, com tortas e pastéis pintados, e acrescente-lhes toucinho e choucroute . LEAL A isso chama-se defraudar o público! TRUÃO Mundus vult decipi, ergo decipiatur. LEAL Tudo bem. Mas mesmo que se faça como aprouver ao público, com os actores pia mais fino. Os artistas de categoria... TRUÃO (interrompendo) Tem de fazer valer tudo como se fosse excelente, falando de cátedra. Se houver um actor que seja incompreensível e repita sempre as mesmas lamúrias, diga com um ar de sabedoria: é maior pensador do que falador, há muito por trás que merece análise. De um cantor que desafine, diga: representa melhor do que canta; de um dançarino que faça as

Claudio Gatti, uma resposta

Como seria de esperar, os artigos de Claudio Gatti sobre Elena Ferrante resultaram. Quer dizer, provocaram o resultado pretendido: uma pequena polémica feita de espuma e brilhos, dois minutos de fogo de artifício. Esperto, Gatti seguiu o rasto infalível do dinheiro. Esperto, mas também muito estúpido pois a investigação policial não serve para nada. O faro leva-o contra um muro. Ele nunca vai saber nada sobre Ferrante porque a sua capacidade de conhecimento é embotada. Não quero pormenores sobre a vida de Elena Ferrante. Ela faz o seu trabalho e não me deve mais nada, nem aos outros leitores. A sua reserva é um consolo num tempo em que toda a gente diz tantos disparates. Gatti, porém, deixou-se levar pelo seu próprio deslumbramento e foi ainda mais longe; um passo infame levou-o a acusar a escritora de inventar um passado napolitano e, desse modo, evitar falar do passado da sua mãe alemã. Essa traição que Gatti atira à cara de Ferrante vira-se contra ele próprio transformada em nojo. N

Chegou o terceiro volume da Colecção Avesso

Chegou o terceiro volume da Colecção Avesso . Trata-se de "O Empresário", libreto de Johann Gottlieb Stephanie der Jüngere para a ópera cómica com o mesmo nome, de W. A. Mozart, estreada em 1786. Versão de Virgílio Melo, prefácio de Sousa Dias e adaptação da partitura de Pedro Junqueira Maia. Já disponível na sua livraria ou em exclamação.pt .

Gustav

Aparentemente, Gustav era um anjo igual aos outros. Uma criatura de grande virtude, bondade, graça e encantadora frescura, com longos caracóis louros presos por uma fitinha azul, e níveas asas, amplas e saudáveis. No entanto, havia algo que o distinguia dos outros anjos: tinha medo das alturas. Quer dizer, sofria horrivelmente de vertigens. Ora aqui está como o destino, com o seu braço um tanto comprido, está sempre pronto a fazer das suas. Quantos mistérios há nos céus e na terra! Ora, esta espécie de maldição era a causa de incontáveis dissabores. As vertigens impediam-no de permanecer muito tempo acima das nuvens. Começava a sentir tonturas, calafrios, náuseas, toldava-se-lhe a visão e era atacado de gaguez. Por isso, sempre que podia, e a coberto de uma desculpa qualquer, vinha deitar-se na terra, debaixo do sol. E embora Deus, por delicadeza, por decência, por cordialidade, por pudor, enfim, por misericórdia, não mostrasse abertamente a sua insatisfação, Gustav achava-se imped

Próximo sábado, 1 de Outubro, pelas 17h00

No próximo sábado, 1 de Outubro, às 17h00, damos início a mais uma temporada de Leituras do Gato Vadio. Para começar, mergulhamos de cabeça nos textos do genial Kurt Tucholsky. A convidada é a Clara Riso. A imagem da leitura é do Luís Nobre, da dupla Lina&Nando .

Os pés de Elena Ferrante

Quebro muitas vezes a regra de só falar daquilo que sei pelo menos alguma coisa. Seguir uma intuição é menos do que seguir o rasto de um avião, mas não me sai da cabeça uma ideia sobre a escrita de Elena Ferrante. Nem sequer é bem uma ideia, não passa de uma hipótese ou até um desejo pateta. Acabei "A amiga genial" e estou à espera que me emprestem os outros livros. Entretanto comprei "Crónicas do mal de amor" e foi quando comecei a ler o primeiro romance que isto começou a insinuar-se. Entre esses romances (1992) e a tetralogia (2011) há uma mudança — não diria de estilo mas de mão. É como se Elena Ferrante tivesse começado a escrever com a mão de Lilla (prodigiosa) e depois mudasse para a mão de Lenu (geométrica). Para criar um pouco de inquietação, agora gostava que Ferrante começasse a escrever com os pés. Isto continua a ser um elogio, claro. Cristina Fernandes