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Mensagens

Comer com os olhos

La Mélancolie des Dragons , de Philippe Quesne é uma história de encantar, um conto de fadas que se podia chamar A Branca de Neve e os Sete Metaleiros . Mas a peça é muito mais do que isso. Quesne encena a construção de um poema. Ou melhor, encena a receita para fazer um poema. Como numa lição de culinária, mostra com arte e paciência, um após outro, os ingredientes essenciais: água, vento, fumo, bolas de sabão, neve, árvores, a forma das letras, um projector, um computador, sacos de plástico e um escadote. Não há truques nem segredos especiais. O resultado depende da qualidade dos ingredientes, dos gestos certos, do tempo dedicado a cada tarefa e, como todos os cozinheiros sabem, da bonomia e amor pela arte. A beleza, como sempre, está na mais completa simplicidade. O poema de Quesne é para comer com os olhos.

Corpo ou fantasma?

Thomas toca com os dedos o rosto do homem morto, abandonado no parque, sobre a erva. Thomas tem de ter a certeza de que o corpo é real, de que não é um artifício da sua imaginação. Ele toca-lhe para se assegurar de que não foi engolido pelo seu próprio sonho, de que não foi traído pelos truques da sua própria arte: ele precisa de ter a certeza de que ainda conhece o chão que pisa. Num filme construído a partir de gestos, movimentos, deslocações, este é o gesto mais significativo de todos. A dúvida conduz à verdade, mas também à ficção. Na manhã seguinte, o corpo já não está no local e não há nenhum indício de que alguma vez lá tenha estado. Desapareceu como se nunca tivesse existido. O momento em que Thomas toca no corpo, como S. Tomé  (Saint Thomas, em inglês), é o exacto momento em que a realidade e a ficção se tocam, em que todas as fronteiras se dissipam. Thomas tocou num corpo ou num fantasma? Esta é a chave de Blow Up .

Contrato de arrendamento

A vida inteira não é outra coisa que uma dor continuamente infligida uma grande dor é o que uma vida inteira é todos mentem a si mesmos constantemente toda a vida A igreja substitui o cérebro da generalidade das pessoas põe à disposição de cada um o seu Deus por medida aluga por assim dizer o seu bom Deus E de facto não apenas por noventa e nove anos mas a cada um de modo vitalício e disso é fiadora não me refiro apenas à católica todas as religiões arrendam a cada um o seu bom Deus a fé não é mais que um contrato de arrendamento milhares de milhões de arrendatários pagam anualmente uma renda altíssima às suas igrejas e dessangram-se Thomas Bernhard, Praça dos Heróis . Tradução de Francisco Luís Parreira.

Passado e presente

As coisas mais simples são as mais complexas. Pensemos na memória. Existirá material mais simples e democrático do que a memória? E, no entanto, existirá coisa mais complexa? Em Olhares Lugares , Agnés Varda transforma a memória num material tão simples e vivo como um campo de girassóis. A história, a passagem do tempo, a ruína, que abre rugas profundas no mundo e em nós, transforma-se numa celebração da vida. Porque, muito simplesmente, são a matéria de que todos somos feitos. Uma aldeia de casas abandonadas ou um velho bairro mineiro ameaçado de demolição são lugares vivos porque carregados de memória. Num dos mais belos momentos do filme, Agnés Varda revela que a idade lhe trouxe problemas de visão; as coisas surgem-lhe desfocadas. A visão desfocada de Varda dá-nos a ver o mundo justamente como ele é: um milagre, um milagre feito de sombra e luz, cores esbatidas e nítidas, morte e vida. A simplicidade, isto é, a sabedoria de Varda é uma absoluta lição de arte e génio. Olhares Luga

Dizer o quê?

O nascimento é uma questão? Uma questão com um trejeito, ou um brilho nos olhos. Eu prefiro o termo dor de barriga, uma grande irritação, uma actividade do mais severo e impiedoso que haja, sem pergunta nem resposta, um jogo da vermelhinha, uma necessidade. A necessidade de quê? A necessidade de dizer. Dizer o quê? O que quer que seja para ser dito. O que é que é para ser dito? Nada é para ser dito, tudo é para ser dito. É para ser dito. É dito. Algumas pessoas dizem-no melhor do que outras. Dizem o quê? O que é para ser dito. Porquê? Vou ignorar esta questão. Harold Pinter, Várias vozes. Tradução de Francisco Frazão.

Girondo-Bonomi-Parra

Capa da edição original de Espantapájaros (al alcance de todos) , de Oliverio Girondo, com desenho de José Bonomi , Buenos Aires, Proa, 1932   Desenho de Nicanor Parra , incluído em Artefactos , 1972.