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Mensagens

Da Corujeira à Foz

Quem anda pela cidade percebe que o medo do contágio também tem uma geografia. Enquanto na parte oriental nota-se já — ou ainda — uma certa descontração (os pobres estão habituados a tudo). Nas zonas mais ricas a apreensão é maior: as pessoas fecham-se em casa, só saem de carro, usam máscaras, luvas e tudo que puderem para se proteger. Não é só medo da doença.
Podemos denunciar os anúncios inspiracionais covid-19 à ASAE por prática de pieguice especulativa?

Lento regresso à normalidade

Os jornais de hoje dão conta de que entramos numa nova fase da gestão da pandemia: começa agora o «lento regresso à normalidade». A primeira imagem que me ocorre é a do velho Biaggio, em Roma, Cidade Aberta , que durante a rusga das tropas nazis não quer fazer-se de morto, expondo familiares e vizinhos ao risco de prisão ou, pior do que isso, à morte. Para o convencer, Don Pietro, o padre da comunidade, usa um argumento de peso: uma sertã aplicada com afinco no cocuruto do velho. Após a rusga e passado o perigo, Don Pietro tenta reanimar o pobre ancião desmaiado, como a Itália do pós-guerra, que acorda para um lento e penoso regresso à normalidade.

Protocolos

Desconfio que os portugueses vão usar a máscara social  do mesmo jeito que decidiram vestir os coletes refletores nos bancos dos carros. Les portugais sont toujours gais. C’est ça le miracle.

Lições de literatura

Ela sorriu-lhe, com o seu cabelo castanho e olhos encovados, com os seus dentes irregulares mas bonitos, com os seus lábios... Como definir uns lábios? «Você tem uns lábios encantados», pensou Kostia, olhando-a directamente, sem timidez; mas nunca se atreveria a dizer o que estava a pensar. Victor Serge, O caso do camarada Tulaev . Tradução de Francisco Silva Pereira.

Rubem Fonseca

À rudeza do seu estilo de base, feito de concreto, acrescenta a extravagância do vitralista. E ainda deixa toda a construção à mostra: betão, vidros coloridos, andaimes, entulho, a exuberância da língua. Ah, a exuberância da língua.

Fantasia submarina

Leio em Truffaut que os primeiros filmes de Rossellini foram documentários sobre peixes. Mordo o isco e encontro Fantasia submarina , uma curta-metragem, de 1940, que não é bem um documentário, mas uma fábula com animais marinhos. Rossellini construiu um aquário em casa para filmar o oceano. Segundo parece, o realizador e o director de fotografia, Rodolfo Lombardi, usaram vários peixes mortos, que animaram com truques engenhosos para dar vida à narrativa. Uma mentira para dizer a verdade. Hoje, encerrados nos nossos aquários de peixes mortos, falta-nos o sabor benévolo da mentira. Só há verdade.

Primeiro dia de lay off

Nunca liguei muito ao carro. Sempre utilizei os transportes públicos para ir trabalhar. Agora o meu carro transformou-se num instrumento de libertação de fronteiras. Nota: o relógio da Estação de São Bento ainda está pela hora antiga.

Fronteira

O CoVid-19 deslocou as políticas da fronteira que tinham lugar no território nacional ou no superterritório europeu em direcção ao nível do corpo individual. O corpo, o teu corpo individual, como espaço vivo e como trama de poder, como centro de produção e consumo de energia, converteu-se no novo território sobre o qual as agressivas políticas de fronteira que temos vindo a desenhar e a testar há vários anos se expressam agora sob a forma de barreira e de guerra contra o vírus. A nova fronteira necropolítica passou das costas marítimas da Grécia para a porta do domicílio privado. Lesbos começa agora na porta de tua casa. E a fronteira não pára de te cercar, de se aproximar cada vez mais do teu corpo. Calais explode agora na tua cara. A nova fronteira é a máscara facial. O ar que respiras deve ser só teu. A nova fronteira é a tua epiderme. A nova Lampedusa é a tua pele. Paul B. Preciado, no jornal Punkto.

Nota prévia

Todos os livros que um dia se escreverem sobre este período de confinamento poderão usar, como nota prévia, este parágrafo de Fran Ross : «Neste livro não existe estado do tempo propriamente dito. Numa ou noutra ocasião, fazem-se vagas alusões às condições meteorológicas. O leitor deverá, ao longo da narrativa, imaginar o estado do tempo que mais lhe agradar. O Verão é o que faz mais sentido num livro desta extensão. Assim, não é preciso gastar páginas e páginas a descrever pessoas a despir e a vestir sobretudos.»

Influenciadores do século XX

(Godard — magnífico estilo Luiz Pacheco —  em diferido .)

A ilha

Há mais de um mês que, após um estranho naufrágio, uma onda vigorosa nos lançou para esta ilha. A ilha é pequena, plana e praticamente não tem segredos. Já percorremos mil vezes as costas e o interior. Nada de novo. Neste momento, já não sei qual dos dois é Crusoe ou Sexta-feira. Talvez sejamos ambos ao mesmo tempo. Às vezes penso que não existe uma maneira de sair daqui e que vamos ter de viver para sempre com os nossos machados, os nossos papagaios e as nossas pequenas provisões de latas de conserva. E o pior é que sinto um vago e secretíssimo prazer nisso.

Um mundo de acordo com os nossos desejos

Há muitas maneiras de traduzir lay off . As que mais me agradam são “deslargar”, “descartar” e “desamparar” — como na frase “desampara-me a loja”. Como quem enxota uma mosca. É preciso o máximo de informalidade na tradução para desmontar a hipocrisia dos actos empresariais. Só assim conseguiremos agir de acordo com os nossos desejos. Não esperem gratidão.

The weather in Wrocław is almost summery

From my window, I can see a white mulberry, a tree I’m fascinated by—one of the reasons I decided to live where I live. The mulberry is a generous plant—all spring and all summer it offers dozens of avian families its sweet and healthful fruits. Right now, the mulberry hasn’t got back its leaves, and so I see a stretch of quiet street, rarely traversed by people on their way to the park. The weather in Wrocław is almost summery: a blinding sun, blue sky, clean air. Today, as I was walking my dog, I saw two magpies chasing an owl from their nest. At a remove of just a couple of feet, the owl and I gazed into each other’s eyes. Animals, too, seem to be waiting expectantly, wondering what’s going to happen next. (...) By Olga Tokarczuk, The New Yorker, April 8, 2020