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Mensagens

Simão, o Mago, fala ao povo de Samaria

Mentira, sou eu que vo-lo digo, povo de Samaria, tudo o que pregam Pedro e Paulo não é mais que ilusão e mentira dos Seus discípulos, tudo isso não passa de uma imensa e terrível impostura! Por isso: tu não matarás. Pois matar é com Ele, com o Único, o Todo-Poderoso, e Justo! É com Ele degolar e matar as crianças no berço, as mães no trabalho de parto e os velhos desdentados! É essa a Sua especialidade; por isso: tu não matarás! Matar é com Ele e com os Seus servidores! Só eles se podem dedicar a essa função! O destino fê-los lobos e a vós cordeiros! Submete-te, pois, povo de Samaria, às leis deles!... Por isso, tu não cometerás adultério, para que eles possam roubar em proveito próprio a flor das tuas filhas! E por isso: tu não cobiçarás os bens do teu próximo, pois nada tens que lhe invejar! Eles exigem tudo de ti, a alma e o corpo, o espírito e o pensamento e, em troca, fazem-te promessas; pela tua submissão de hoje, pela tua oração e pelo teu silêncio neste mundo, oferecem-te uma

É na terra

Exposição de Roger Ballen na Cadeia da Relação . A maioria das fotografias quase não me toca. Composições complexas que lembram um Joel-Peter Witkin um pouco mais contido, um pouco menos exuberante. Mas a série que está na primeira sala é muito diferente. Imagens simples, sem fogo-de-artifício. Cabeça, tronco e membros, em cenários praticamente despidos. Há qualquer coisa que me conduz até Caravaggio. Talvez seja a sujidade nas mãos e nos pés. Não há nada mais verdadeiro do que mãos e pés sujos. Não vivemos no ar, mas na terra. É sobre ela que nascemos, caminhamos e morremos.

De longe

Hölderlin não visitou a Grécia. Quando queremos ressuscitar deuses mortos, não devemos frequentar o solo que eles pisaram. Só os podemos fazer reviver de longe. O turismo corta qualquer vínculo vivo com o passado. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Juventude em marcha

Ontem, domingo, fiz mais de vinte quilómetros ao longo da floresta de Lyon, especialmente no admirável vale de Lovrerie (a partir de Gisors). Hoje, euforia e frenesim filosófico. O cérebro só funciona quando exercito os músculos. Um dia hei-de escrever um Tratado da Marcha. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

O movimento é mínimo

Encontrado na última página de um livro de Danilo Kiš, que comprei ontem num alfarrabista da Rua da Boavista.

Jejum e paixão

Pelos sintomas, não estou certa se Bradley está apaixonado por Julian ou apenas alterado por não comer nada durante tanto tempo. Este jejum espontâneo — que Iris Murdoch faz questão de realçar — aproxima-o dos místicos e das suas paixões exacerbadas.  Murdoch não dá ponto sem nó — deve ser por isso que gosto tanto dela.

Ladrões de bicicletas

Em Lisboa, o responsável da empresa municipal que gere a frota de bicicletas partilháveis queixa-se de uma onda de assaltos na cidade. Andam a roubar as bicicletas.  «De qualquer forma, a grande maioria das bicicletas foi recuperada; como o sistema tem GPS, conseguimos fazer a sua recuperação.» Numa palavra, as bicicletas podem ser localizadas em «tempo real», de forma rápida, higiénica e sem drama neo-realista. Fim do filme.

Não ouvimos ninguém até sermos ouvidos

Tenho andado a seguir o caso do padre de Fafe, mas os artigos que vou encontrando por aí são fracos — os jornalistas não leram Camilo. No entanto, dei agora com este texto na página do Facebook da Confraria Nossa Senhora das Neves. Isto sim, é esclarecedor e faz raccord com a humidade do João César Monteiro — um documento, portanto.

Nortada

O Governo decretou a «libertação total do país», a partir de 1 de Agosto. Os jornais falam em «caminho da libertação», «plano de libertação», «libertação da sociedade e da economia». Com um pouco de imaginação, até conseguimos ouvir os ventos da Normandia a soprar nas praias da Foz.

Observações avulsas sobre o bonfim #31

 

Julho

Do outro lado da janela, o mar interminável de telhados. Gaivotas e bandeiras azuis nos estendais. Aviões e guindastes, papagaios de papel. O contínuo marulhar dos pneus na rua. Deste lado da janela, «nadar, nadar, nadar, para não morrer afogado.»

Onde fica o caminho?

Uma folha branca está cheia de caminhos. Já se sabe, será preciso ir da esquerda para a direita. Já se sabe, vai ser preciso andar muito, penar muito. E sempre da esquerda para a direita. Também se sabe - às vezes - previamente: quando a página estiver escurecida pelos signos, será preciso rasgá-la. Será preciso refazer o mesmo caminho dez vezes, cem vezes; o caminho do nariz, da nuca, da boca; o caminho da fronte e da alma. E todos esses caminhos têm os seus próprios caminhos. - Caso contrário, não seriam caminhos. Edmond Jabès, O Livro das Questões . Tradução de Pedro Eiras.

Oh, estou tão contente com as botas.

Julian e Bradley já começaram a falar de Hamlet, mas não tenho coragem de interromper a leitura d’ O Príncipe Negro e passar a Shakespeare para um exercício diletante de montagem paralela; é difícil resistir à escrita sedutora de Iris Murdoch (e à tradução exemplar de José Miguel Silva). Para mais, acabei de chegar à cena das botas roxas. Se fosse eu a decidir, era as botas que punha na capa — segundo o meu critério sofisticado , só faltava isto para considerar Murdoch uma verdadeira filósofa.

Estar com a mosca

Fui vaguear para as ruas dos duques. Ao passar à porta do café Asa de Mosca, lembrei-me da pretensão recente de traduzir  avoir le cafard por estar com a mosca; não deu em nada porque a expressão já está tomada. É pena. Mesmo assim, se tivesse de me encontrar com Cioran aqui no Porto, era no Asa de Mosca. Depois podíamos ir ao Prado do Repouso — ele era capaz de apreciar o nome e ainda alguns arroubos arquitectónicos que por lá se vêem. Quando saí do cemitério comprei vinho (os tais de altitude ) e flores.