Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

Variações sobre o mesmo tema

Dois homens entram num bar. Grillparzer e Hebbel entram num bar. Um ser de ferro e uma serpente entram num bar. La Fontaine e uma doninha entram, de rompante, num bar. Um pavão e as ruínas do Castelo de Heidelberg entram num bar. Um autor famoso e um autor de que ninguém fala entram num bar. Um romance de Dostoiévski e uma tragédia grega entram num bar. Uma nuvem e um cavaleiro montado no seu garboso cavalo entram num bar. O orgulho sereno de Gluck e a bondade de coração de Haydn entram num bar. A rigidez e a insociabilidade nórdico-protestantes entram, de braço dado, num bar. Uma obra de arte e o sentido profundo da língua entram, completamente ébrios, num bar.

Uma volta à cadeira

Na região de Chao-chou, uma velha mulher enviou ao mestre um donativo pedindo-lhe que recitasse toda a colecção de sutras budistas. Ao ouvir o pedido, o mestre levantou-se e deu uma volta à cadeira. Depois disse: “Acabo de recitar toda a colecção de sutras”. Quando o mensageiro regressou e transmitiu à mulher a resposta de Chao-chou, ela perguntou: Pedi a Chao-chou que recitasse toda a colecção de sutras. Por que motivo ele não recitou senão metade? Koan incluído no ensaio Koans in the Dogen tradition: How and why Dogen does what he does with Koans , de Steve Heine. Tradução de Rosa Maria Martelo.
El sueño del caballero , ou Desengaño del Mundo , de Antonio de Pereda, circa 1650.

Uma bela manhã

O traseiro de Bastian era o sítio para onde convergiam todos os pés. Homens, mulheres, velhos, novos, padres, políticos, altos ou coxos, ninguém se poupava a um belo pontapé no traseiro de Bastian. Era um hábito que fazia parte da vida da cidade. Os pontapés sucediam-se nas ruas, nos transportes públicos, nos cafés e no escritório, com a precisão de um relógio solar. Durante a noite ainda ia tudo bem. Mas de manhã o martírio do pobre homem começava. Havia sempre alguém com vontade de desferir um panásio certeiro. E ao fim do dia, esgotado, abatido, amarrotado, com o traseiro moído de pancadas, arrastava-se até casa. Apesar disso, Bastian conservava a impassibilidade de um santo de altar. Era um homem pacífico, incapaz de fazer mal a uma mosca. Tossia, arqueava as sobrancelhas, acendia um cigarro, e lá ia andando e apanhando pontapé atrás de pontapé. Mas por que razão não punha ele termo àquilo? Por que não fazia qualquer coisa, por que não tomava uma atitude? Os anos foram passando,

Próximo sábado, 6 de Fevereiro, no Gato Vadio, Porto

A imagem é do Luís Nobre, dos Lina&Nando . A entrada é livre.

I knew Bartok

I used to be a professional musician, playing in a string quartet in the 1960s’, says Richard Sennett smiling. ‘And there was this one woman in particular who came to see us perform all six of the Bartok Quartets in Chicago over the course of a single weekend. Playing all six is very hard to do, and, at the end, I was longing for a drink and a cigarette. And the woman came up to me and said, “How beautiful that was. You know, I knew Bartok.” And I thought, goodness, this can’t be true. And then she said, “Yes, my name’s Hannah Arendt”, and, after sort of fainting on the floor, we took her out for a drink. Richard Sennett.

Tisana 212

Era uma vez um país de coveiros. Apertados uns contra os outros abriam as respectivas covas dos inimigos, correspondendo fielmente à sua mútua inimizade. As pás subiam e desciam brilhantes, aéreas, rítmicas, e a terra era atirada de uma cova para outra, numa chuvada feericamente pesada. Nesse país todos estavam enlouquecidos pelo desejo de retribuir a retribuição. Tinham muito sangue português. Ana Hatherly, 463 Tisanas. Próximo sábado, 6 de Fevereiro, pelas 17h00, no Gato Vadio.

Digo-não-digo

Digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, não-digo.

Tisana 83

Era uma vez um mono-asa. Como era mono-asa só podia voar numa direcção. Mas a generosa natureza tinha tomado as suas providências e assim ao mono-asa não importava nada saber para onde ia ou donde vinha. Por isso a sua asa tinha o aspecto de uma barbatana e a maior parte das vezes servia-lhe de leque. Ana Hatherly, 463 Tisanas.

Tisana 10

Nesse dia eu lera um artigo em que se falava da evolução das artes e se concluía que nada nos restava já fazer uma vez que tudo estava feito já e nada lhe poderíamos acrescentar. Fiquei a pensar seriamente no assunto durante um certo tempo. Até que finalmente compreendi. Dirigi-me para o meu escritório sentei-me à secretária tirei da gaveta uma folha de papel e comecei a escrever um longo telefonema. Praticando mais uma vez aquilo a que chamo a prova de resistência dos materiais poéticos chamei o meu porco Rosalina e pedi-lhe que o lesse e depois mo enviasse pelo correio. Ana Hatherly, 463 Tisanas .

He's the only human being

Daqui.

No meu lugar, o que é que você faria?

HOMEM B - Valha-me Deus! Lá voltei a perder a perna outra vez! HOMEM A - Sim, perdeu-a mesmo, não há dúvida. HOMEM B - O que é que posso fazer agora? HOMEM A - Volte a aparafusá-la. HOMEM B - Impossível. Vi que os parafusos rolaram para a sarjeta. HOMEM A - Pois chame um guarda. HOMEM B - (Com grande decisão, como se tivesse uma raiva especial ao poder estabelecido e a todos os seus representantes.) Nunca! HOMEM A - Resta uma outra solução. HOMEM B - Qual? HOMEM A - Coma a perna. HOMEM B - A minha própria perna? HOMEM A - (Sem perder nem por um instante o seu ar de senhorito aborrecido, que se esforça inutilmente por encontrar à sua volta um motivo de distracção.) Sim, coma essa perna que o atraiçoou. Você parece um tipo bastante satisfeito consigo próprio. Foi o que eu pensei mal o vi a atravessar a rua. Mostre agora a todos até que ponto se ama a si próprio. Essa perna que perdeu, ao fim e ao cabo, é de carne e osso. HOMEM B - (Desconcertado.) Reconheço que gosto bastan

Aptidões e possibilidades do guarda-chuva

De todos os objectos que existem no mundo, o guarda-chuva é aquele que presta ao homem os mais assinalados e distintos serviços. Certamente o automóvel e a escova de dentes foram e continuam a ser utilíssimos auxiliares. Ambos, de resto, com uma brilhante folha de serviços em prol da civilização moderna. No entanto, o guarda-chuva é o único que verdadeiramente compreende o homem e que procura servi-lo sem a preocupação de quaisquer benefícios materiais. É o único que procura espontaneamente o convívio constante com o dono e que conhece todas as pessoas da família, como se dela fizesse parte. Não pretendo aqui tecer mais um hino às virtudes do guarda-chuva, a propósito do qual já se escreveram as mais lisonjeiras referências, não só em obras da especialidade*, mas também e sobretudo em belas páginas de eminentes prosadores, poetas, teólogos e filósofos. A nossa intenção é apenas enumerar objectivamente algumas das qualidades naturais do guarda-chuva. Ora, no seu brilhante palmarés fig

Uma carta

Um estudante de notariado suicidou-se em 1810 e deixou uma carta em que anunciava a sua resolução, porque, após sérias reflexões, tinha reconhecido que era incapaz de se tornar tão grande como Napoleão. Marcel Schwob, Coração Duplo . Tradução de Raúl Henriques. Próximo sábado, 9 de Janeiro, pelas 17h00, no Gato Vadio.

Marcel Schwob nas Leituras do Gato Vadio, próximo sábado, 9 de Janeiro

Imagem de Luís Nobre, da dupla Lina&Nando . Entrada livre.

A gente andava sobre livros

Ele morava (...) em uma espécie de antro sombrio (...). A gente andava sobre livros, sentava-se sobre livros, mesmo a cama era coberta de livros. Um cantinho minúsculo, com uma mesinha, representava o “escritório”, e ainda, esse cantinho minúsculo estava frequentemente coberto e escondido por um livro! No meio desse rio de papel impresso, Marcel Schwob estava em seu ambiente. Marguerite Moreno a propósito de Marcel Schwob, citada por Claudia Borges de Faveri.

Stálin morreu sem ordem pessoal do próprio camarada Stálin.

Mas, de repente, a 5 de Março, Stálin morreu. Esta morte rompeu o gigantesco sistema de entusiasmo mecanizado, da ira popular e do amor popular estabelecidos por ordem do comité do partido. Stálin morreu fora do plano, sem ordem dos órgãos de direcção. Stálin morreu sem ordem pessoal do próprio camarada Stálin. Nesta liberdade, neste voluntarismo da morte havia qualquer coisa de dinamitador, contradizendo a própria essência profunda do Estado. Grande perturbação abrangeu as mentes e os corações. Stálin morreu! Havia aqueles a quem o sentimento da desgraça colheu: nalgumas escolas, os professores obrigavam os alunos a ajoelharem-se, e eles próprios, de joelhos, banhados em lágrimas, liam o comunicado governamental sobre o falecimento do líder. Nas reuniões de luto das instituições e fábricas, havia muitos que entravam em histeria, ouviam-se as exclamações loucas das mulheres, os choros, algumas caíam desmaiadas. Um grande deus, ídolo do século vinte, morreu, e as mulheres choravam. (

O pássaro do Brasil

Pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pru.