Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

Ficções de Wong Kar-Wai

Em 1944, Jorge Luís Borges publicou aquele que é talvez o mais popular e influente dos seus livros: Ficções . Um dos contos desse livro intitula-se A Biblioteca de Babel . De acordo com a imaginação de Borges, a Biblioteca de Babel é um “universo” composto por um número indefinido de galerias, com vastos poços de ventilação, intermináveis pisos e uma escada em espiral, que se afunda e se eleva a perder de vista. A biblioteca alberga um número infindável de livros, sobre todos os assuntos e em todas as línguas, vivas, mortas e desconhecidas, e é habitada por numerosos bibliotecários que por ali vagueiam na tentativa de encontrar O livro . Em 1994, exactamente 40 anos após Ficções , Wong Kar-Wai apresentou Chungking Express . Para um realizador que, como Borges, parece obcecado com o tempo e a relação entre os números, a coincidência das datas é mais do que uma simples curiosidade. O cenário do filme é um imenso complexo imobiliário, localizado no coração de Hong Kong, chamado Chungking

Aprender a escrever com os mestres

No espectro deste conto, os raios principais são o dourado, o vermelho e o lilás porque a cidade está cheia de cúpulas, da revolução e de lilases. A revolução e o lilás estão em plena floração, pelo que é possível, com toda a fidedignidade, tirar a conclusão de que o ano é o de 1919, e o mês é o de Maio. Evgueni Zamiatine, O Xis. Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra.

Deus

Começa a fazer-se tarde. A festa está no auge. Os alegres companheiros são todos cor, barulho, amor. As lindas raparigas, desapertadas, descompostas, abandonam-se. Os seus olhos entrecerram-se docemente, e os seus lábios que se entreabrem deixam aperceber tesouros húmidos de púrpura e de nácar. As taças, nunca cheias e nunca vazias! Esvoaçam no ar as canções, ritmadas pelo tilintar dos copos e pelas casquinadas de riso das lindas raparigas. De súbito, o velho relógio da sala de jantar interrompe o seu tiquetaque monótono e resmungão para ranger raivosamente, como faz sempre quando lhe dá para bater as horas. É meia-noite. As doze badaladas caem, lentas, graves, com aquele ar de ralho próprio dos velhos relógios patrimoniais. Parecem dizer-nos que já muitas badaladas deram eles para os nossos avoengos desaparecidos e que ainda muitas mais darão para os nossos netos, quando nós já não estivermos cá. Sem se aperceber, a nossa alegre companhia pôs uma surdina à sua balbúrdia e as

Allais é grande

Um dos livros mais queridos da nossa Colecção Avesso já chegou. É uma antologia belíssima de Alphonse Allais, 63 Histórias de Humor e 1 Poema Melancólico , com uma tradução magnífica de Filipe Guerra. O design (já não tenho adjectivos) é dos inevitáveis Lina&Nando , responsáveis pelo grafismo da colecção. O livro já está disponível no sítio da editora Exclamação e em breve nas livrarias.

Um postal de Budapeste

Örkény pop István Örkény é um escritor popular na Hungria. Em qualquer livraria ou alfarrabista podem encontrar-se vários dos seus volumes. Uma amiga que viveu largos anos em Budapeste, disse-nos que muitos húngaros conhecem de cor as suas histórias. Na rua Szent István, perto da estação ferroviária de Nyugati, há uma livraria meio de plástico, que faz lembrar as nossas Bertrand, chamada Örkény István Könyvesbolt , ou seja, Livraria István Örkény. Coisa tão natural como cá existir uma Livraria Camões ou Bocage. O único livro traduzido entre nós, Histórias de 1 minuto , ou Contos de um minuto , na versão de Ernesto Rodrigues (1983), é dos poucos que não conseguimos encontrar nas livrarias que visitamos. Pelos vistos, esgota facilmente. O problema dos húngaros é não saberem português: o primeiro volume das Histórias de 1 minuto , da Cavalo de Ferro (o segundo volume nunca chegou a sair), andou aos pontapés, durante anos, pelas feiras de fundo de catálogo a 1 euro ou menos.  

Dois postais de Viena

O papel é duro como mármore  Seguindo as indicações de Cláudio Magris , e atravessando Rossauer Brücke, chegamos a Rembrandtstraße. É uma rua relativamente pequena, cinzenta e silenciosa. Em quase todas as entradas, há placas em mármore ou bronze a lembrar os nomes de cidadãos judeus que foram deportados durante o nazismo. São dezenas e dezenas de nomes, famílias inteiras. No número 35, viveu Joseph Roth. É uma das raras entradas onde não existe qualquer placa. Também não há qualquer referência à passagem de Roth por aqui. Seja como for, uma página de papel com o seu nome será sempre tão sólida e duradoura como uma placa de mármore.   Uma pedra e uma trepadeira O túmulo de Karl Kraus fica próximo de uma das portas secundárias do gigantesco cemitério central de Viena, o Wiener Zentralfriedhof, muito longe dos túmulos de Schubert ou Beethoven. Uma pedra de granito, intencionalmente mal esculpida, exibe apenas o nome. Não há indicação das datas de nascimento ou morte. A ca

Preparação para Medeia: experiências de química

SENHOR ORLAS (suspira) : A vida é um abismo de contradições, Araminthe. Bem! Vou para o meu gabinete reflectir em tudo isto. Não posso acreditar que não haja uma solução em que o dever e a felicidade se conciliem. ARAMINTHE: Eu creio, senhor, que é essa a grande inquietação dos homens, desde que saíram das cavernas para tentar viver em sociedade. Inventaram o casamento para tentar conjugar ao mesmo tempo essas duas noções. SENHOR ORLAS: Apenas por um curto espaço de tempo, Araminthe. Acredite num homem que tentou essa aventura! O que se passa a seguir é como uma dessas experiências de química em que se deleita o nosso vizinho, senhor Voltaire. Ao princípio, a mistura brilha; depois, a felicidade, que é volátil, evapora-se e não fica na retorta senão o grosso calhau cinzento do dever. Jean Anouilh , Cecile ou a escola de pais. Tradução de Virgínia Mendes.

Preparação para Medeia: o lápis de Jean Anouilh

Sónia Andrade, Hidragramas .

O cacto sobre a mesa

Aki Kaurismäki, O outro lado da esperança .

Preparação para Medeia: um Jasão sem nome

O DESCONHECIDO - Chamo-me Roger van Hutten. Não é o meu nome. Não tenho nome. Sou filho de um vendedor de fundas de Arras, que não me quis reconhecer. Daí a minha carreira. Decidido a nunca mostrar a minha cédula de nascimento, afastei-me da vida em que as pessoas fazem exames, se casam, vão para soldado ou recebem heranças - em resumo, de toda a vida em que nos exigem um bilhete de identidade - e entrei naquela onde se passa sem ele. Assim me liguei a tudo quanto não necessita, também, do tal bilhete de identidade: aos fósforos belgas, às rendas e à cocaína. Livros especiais também. Na vida de um aventureiro há sempre um período em que ele se sustenta da lubricidade humana. A necessidade em que me vi de empurrar um funcionário de alfândega para lá de uma fronteira donde se não regressar, obrigou-me a embarcar como fogueiro para uma costa que aconteceu ser a da Malásia. Aí tive possibilidades de me safar e organizar o contrabando de chifres de rinocerontes, base de toda a medicamentaçã

A verdadeira natureza

Bacantes

Bacantes - Prelúdio para uma purga , de Marlene Monteiro Freitas, é uma obra bela e complexa, povoada de pormenores, truques e dispositivos curiosíssimos, que revelam uma inteligência e sensibilidade raras. A escolha da grande peça de Eurípides (representada pela primeira vez por volta de 406 a. C.) não é inocente: As Bacantes retratam as origens do culto de Dióniso, cujo ritual era acompanhado de dança frenética até um estado de exaltação mística - a loucura sagrada - alcançada pelo esgotamento físico. Começar pelo princípio A peça de Eurípides, As Bacantes , centra-se no mito do rei de Tebas, Penteu, que se recusa a venerar Diónisos e que, em consequência disso, é castigado pelo deus da forma mais cruel e trágica: o rei é morto pela própria mãe, Agave, enquanto esta se acha tomada pelo delírio báquico, durante as celebrações dos rituais dionisíacos. As Dionísias eram festas em honra de Diónisos, também conhecido por Baco ou Brómio, deus da fertilidade e do vinho, potencial cau

Corpo de Deus

Uma floresta em marcha

Última nota sobre Macbeth . No final de Macbeth , antes da derradeira batalha, Malcolm ordena aos soldados que cortem ramos das árvores de Birnam e que avancem ocultos atrás deles, de maneira a confundir o inimigo. MALCOLM: Que cada homem corte pra si ramos E os leve à sua frente, pra escondermos O número dos nossos e induzirmos Em erro os espiões. Shakespeare, Macbeth , 5.4 Que melhor imagem para ilustrar aquilo que somos? Um bando de criaturas ardilosas, assustadas e determinadas em esconder a sua angústia atrás de ramos de árvores. Tal como no início dos tempos.

A arte de sublinhar Macbeth, segundo Marquês de Sade

No Manual de Leitura de Macbeth , editado pelo  Teatro Nacional de São João , Rui Carvalho Homem escreve sobre a famosa “intemporalidade” de Shakespeare. Quer dizer, sobre a “capacidade de o texto shakespeariano nos propor um entendimento do mundo e do humano”, que atravessa o tempo e o espaço. Essa “intemporalidade”, continua Rui Carvalho Homem, é “encarada hoje com reserva (ou cepticismo)” pela crítica académica, em resultado do aparecimento de “novos contextualismos”. No entanto, é inegável que Shakespeare foi e continua a ser “fonte de ampla produção literária e artística”, e a sua influência “não encontra paralelo em qualquer outro corpus literário e dramático”. Shakespeare criou o mundo em sete dias. No primeiro dia fez o céu, as montanhas e os abismos da alma. No segundo dia fez os rios, os mares, os oceanos E os restantes sentimentos - Que deu a Hamlet, a Júlio César, a António, a Cleópatra e a Ofélia, A Otelo e a outros, Para que fossem seus donos, eles e os seus

Macbeth na alcova

Tenho pensado em Macbeth por causa da leitura de Nuno Carinhas , actualmente em cena no São João. É óbvio que Shakespeare está em todo o lado, mas não existirá uma estranha e íntima ligação entre Macbeth e as ficções de Marquês de Sade? E estou a pensar, em particular, na Filosofia na Alcova . Voltarei ao assunto.