Bacantes - Prelúdio para uma purga, de Marlene Monteiro Freitas, é uma obra bela e complexa, povoada de pormenores, truques e dispositivos curiosíssimos, que revelam uma inteligência e sensibilidade raras. A escolha da grande peça de Eurípides (representada pela primeira vez por volta de 406 a. C.) não é inocente: As Bacantes retratam as origens do culto de Dióniso, cujo ritual era acompanhado de dança frenética até um estado de exaltação mística - a loucura sagrada - alcançada pelo esgotamento físico.
Começar pelo princípio
A peça de Eurípides, As Bacantes, centra-se no mito do rei de Tebas, Penteu, que se recusa a venerar Diónisos e que, em consequência disso, é castigado pelo deus da forma mais cruel e trágica: o rei é morto pela própria mãe, Agave, enquanto esta se acha tomada pelo delírio báquico, durante as celebrações dos rituais dionisíacos. As Dionísias eram festas em honra de Diónisos, também conhecido por Baco ou Brómio, deus da fertilidade e do vinho, potencial causador de alterações da consciência que fazem supor a intervenção de uma divindade.
Mas não é essa a via normalmente seguida para atingir o êxtase, ou seja, a sensação da presença do deus, a alienação momentânea da personalidade, substituída pela de Diónisos. Há todo um conjunto de actuações que preparam esse momento. Trienalmente, em pleno Inverno, descalças e com vestes ligeiras, mulheres em grupo [as Bacantes] subiam às altas montanhas cobertas de neve e aí, ao som de flauta e tamboris, efectuavam correrias e frenéticas danças (oreibasia), apanhavam e dilaceravam um animal selvagem (sparagmos) e, finalmente, comiam-no cru (omophagia), alcançando assim o referido êxtase. Todos estes actos estão magnificamente expressos no párodo de As Bacantes, a mais completa fonte de informação que possuímos [sobre o culto dionisíaco].
Maria Helena da Rocha Pereira.
Marionetas
Tal como as Bacantes de Eurípides, os personagens de Prelúdio para uma purga actuam como se fossem conduzidos por uma espécie de força exterior, que está para além da sua vontade, razão e consciência. Como se a divindade comandasse toda a acção e os personagens, simples marionetas nas mãos do deus, não fossem responsáveis pelos seus actos. Nesse sentido, tudo pode acontecer, nada é impossível.
O traseiro falante ou a vulva cantante
Nos primeiros momentos da peça, o palco é dominado por um personagem (falta-me um termo melhor), que consiste num traseiro que fala. Ou será antes uma vulva que canta? O sexo tem uma voz e é a voz principal nas acções das Bacantes.
Dois coros
Uma das opções mais curiosas de Marlene Monteiro Freitas é a utilização de dois coros, sublinhando assim a importância que Eurípides atribui ao coro na peça original. O primeiro é formado por um grupo de trompetistas (em lugar das flautas) e o segundo pelo conjunto dos bailarinos (que recorrem a um drum pad, em vez dos tamboris). O momento mais cómico de Prelúdio para uma purga é justamente um “diálogo” entre os dois coros, durante o qual ambos recorrem a diferentes linguagens, desenhando-se uma espécie de atlas de todos os sons do mundo.
Estantes vazias
No palco estão dispostas inúmeras estantes de partituras vazias. O conjunto forma uma espécie de estranho bosque de ramos metálicos. Não há pautas nem textos. O truque é muito hábil e parece querer dizer que as folhas com a peça de Eurípides perderam-se e que os personagens estão obrigados a reinventar ou refazer a peça original. As estantes vazias transformam-se então, nas mãos dos personagens, em espingardas (apontadas aos espectadores, talvez como castigo pela nossa falta de fé nos deuses), aspiradores (que vão limpando os destroços que ficam das danças orgiásticas), bicicletas (que avançam para lado nenhum, ou seja, por dentro da imaginação), máquinas de escrever (que os personagens usam para escrever e reescrever, vezes sem conta, ficções que se perdem no ar) ou muletas (talvez numa referência à velhice, representada na peça original por Cadmo, o velho rei de Tebas, e Tirésias, o adivinho). Há ainda momentos em que os personagens deformam ou destroem as estantes, como se o objectivo fosse eliminar Eurípides e começar tudo de novo.
Máscaras
Os personagens destas Bacantes não têm máscara. Ou melhor, não usam máscaras sobre os rostos; são os rostos que desenham as próprias máscaras. E tal como as máscaras gregas, os rostos assumem expressões trágicas, cómicas, grotescas, que permanecem fixas ao longo da peça. As verdadeiras máscaras são estas, as que os bailarinos são capazes de criar.
As mãos calçam luvas
Durante grande parte do tempo, os personagens têm uma mão descoberta e outra calçada com uma luva. A mão da razão e a mão da fé? Ou talvez o contrário: a mão da fé (coberta) e a mão da razão (destapada)? Uma mão para o amor e outra para a vingança? A mão de Eurípides, nua e sem artifícios, e a mão de Marlene Monteiro Freitas, oculta sob uma segunda pele? E quantas vezes confundimos as duas? A verdade é que ao fim de algum tempo, as luvas dos personagens começam a deteriorar-se e há bocados que se desprendem do tecido. O artifício, seja ele qual for, dissipa-se.
Zeus cumpriu a sua parte
Sensivelmente a meio da peça, há um momento de pausa, como uma cortina que impusesse um antes e um depois. Na tela do fundo de palco é projectado um excerto do filme Extreme Private Eros: Love Song 1974, de Kazuo Hara. Uma mulher dá à luz uma criança, sozinha e sem qualquer ajuda. O plano é frontal e nada fica por documentar. O parto dura largos minutos, ao longo dos quais a mulher e a criança sofrem todas as dores do parto. Uma imagem do nascimento difícil de Diónisos, o deus gerado por Sémele, mulher de condição mortal, mas nascido da coxa de Zeus? O nascimento de Diónisos marca a origem mais profunda do teatro grego, da dança, das festas, do êxtase e de todas as faculdades criadoras. Há, pois, um antes e um depois de Diónisos para todos nós.
Ravel
A peça termina com o Bolero de Ravel e uma reinterpretação, muito livre, da famosa coreografia de Maurice Béjart (antes já se ouvira Prélude à l'Après-midi d'un faune, de Debussy, acompanhado pela sombra de Nijinski, como se Prelúdio para uma purga fosse também uma homenagem a todos os clássicos). É um dos momentos mais exaltantes e comoventes. Os corpos são tomados por uma espécie de longo e contagiante delírio em honra de Baco. Eis a nossa loucura sagrada. Quando o Bolero termina e as luzes apagam, regressamos à realidade e à justa medida. Os mistérios terminaram. Ou não.
Começar pelo princípio
A peça de Eurípides, As Bacantes, centra-se no mito do rei de Tebas, Penteu, que se recusa a venerar Diónisos e que, em consequência disso, é castigado pelo deus da forma mais cruel e trágica: o rei é morto pela própria mãe, Agave, enquanto esta se acha tomada pelo delírio báquico, durante as celebrações dos rituais dionisíacos. As Dionísias eram festas em honra de Diónisos, também conhecido por Baco ou Brómio, deus da fertilidade e do vinho, potencial causador de alterações da consciência que fazem supor a intervenção de uma divindade.
Mas não é essa a via normalmente seguida para atingir o êxtase, ou seja, a sensação da presença do deus, a alienação momentânea da personalidade, substituída pela de Diónisos. Há todo um conjunto de actuações que preparam esse momento. Trienalmente, em pleno Inverno, descalças e com vestes ligeiras, mulheres em grupo [as Bacantes] subiam às altas montanhas cobertas de neve e aí, ao som de flauta e tamboris, efectuavam correrias e frenéticas danças (oreibasia), apanhavam e dilaceravam um animal selvagem (sparagmos) e, finalmente, comiam-no cru (omophagia), alcançando assim o referido êxtase. Todos estes actos estão magnificamente expressos no párodo de As Bacantes, a mais completa fonte de informação que possuímos [sobre o culto dionisíaco].
Maria Helena da Rocha Pereira.
Marionetas
Tal como as Bacantes de Eurípides, os personagens de Prelúdio para uma purga actuam como se fossem conduzidos por uma espécie de força exterior, que está para além da sua vontade, razão e consciência. Como se a divindade comandasse toda a acção e os personagens, simples marionetas nas mãos do deus, não fossem responsáveis pelos seus actos. Nesse sentido, tudo pode acontecer, nada é impossível.
O traseiro falante ou a vulva cantante
Nos primeiros momentos da peça, o palco é dominado por um personagem (falta-me um termo melhor), que consiste num traseiro que fala. Ou será antes uma vulva que canta? O sexo tem uma voz e é a voz principal nas acções das Bacantes.
Dois coros
Uma das opções mais curiosas de Marlene Monteiro Freitas é a utilização de dois coros, sublinhando assim a importância que Eurípides atribui ao coro na peça original. O primeiro é formado por um grupo de trompetistas (em lugar das flautas) e o segundo pelo conjunto dos bailarinos (que recorrem a um drum pad, em vez dos tamboris). O momento mais cómico de Prelúdio para uma purga é justamente um “diálogo” entre os dois coros, durante o qual ambos recorrem a diferentes linguagens, desenhando-se uma espécie de atlas de todos os sons do mundo.
Estantes vazias
No palco estão dispostas inúmeras estantes de partituras vazias. O conjunto forma uma espécie de estranho bosque de ramos metálicos. Não há pautas nem textos. O truque é muito hábil e parece querer dizer que as folhas com a peça de Eurípides perderam-se e que os personagens estão obrigados a reinventar ou refazer a peça original. As estantes vazias transformam-se então, nas mãos dos personagens, em espingardas (apontadas aos espectadores, talvez como castigo pela nossa falta de fé nos deuses), aspiradores (que vão limpando os destroços que ficam das danças orgiásticas), bicicletas (que avançam para lado nenhum, ou seja, por dentro da imaginação), máquinas de escrever (que os personagens usam para escrever e reescrever, vezes sem conta, ficções que se perdem no ar) ou muletas (talvez numa referência à velhice, representada na peça original por Cadmo, o velho rei de Tebas, e Tirésias, o adivinho). Há ainda momentos em que os personagens deformam ou destroem as estantes, como se o objectivo fosse eliminar Eurípides e começar tudo de novo.
Máscaras
Os personagens destas Bacantes não têm máscara. Ou melhor, não usam máscaras sobre os rostos; são os rostos que desenham as próprias máscaras. E tal como as máscaras gregas, os rostos assumem expressões trágicas, cómicas, grotescas, que permanecem fixas ao longo da peça. As verdadeiras máscaras são estas, as que os bailarinos são capazes de criar.
As mãos calçam luvas
Durante grande parte do tempo, os personagens têm uma mão descoberta e outra calçada com uma luva. A mão da razão e a mão da fé? Ou talvez o contrário: a mão da fé (coberta) e a mão da razão (destapada)? Uma mão para o amor e outra para a vingança? A mão de Eurípides, nua e sem artifícios, e a mão de Marlene Monteiro Freitas, oculta sob uma segunda pele? E quantas vezes confundimos as duas? A verdade é que ao fim de algum tempo, as luvas dos personagens começam a deteriorar-se e há bocados que se desprendem do tecido. O artifício, seja ele qual for, dissipa-se.
Zeus cumpriu a sua parte
Sensivelmente a meio da peça, há um momento de pausa, como uma cortina que impusesse um antes e um depois. Na tela do fundo de palco é projectado um excerto do filme Extreme Private Eros: Love Song 1974, de Kazuo Hara. Uma mulher dá à luz uma criança, sozinha e sem qualquer ajuda. O plano é frontal e nada fica por documentar. O parto dura largos minutos, ao longo dos quais a mulher e a criança sofrem todas as dores do parto. Uma imagem do nascimento difícil de Diónisos, o deus gerado por Sémele, mulher de condição mortal, mas nascido da coxa de Zeus? O nascimento de Diónisos marca a origem mais profunda do teatro grego, da dança, das festas, do êxtase e de todas as faculdades criadoras. Há, pois, um antes e um depois de Diónisos para todos nós.
Ravel
A peça termina com o Bolero de Ravel e uma reinterpretação, muito livre, da famosa coreografia de Maurice Béjart (antes já se ouvira Prélude à l'Après-midi d'un faune, de Debussy, acompanhado pela sombra de Nijinski, como se Prelúdio para uma purga fosse também uma homenagem a todos os clássicos). É um dos momentos mais exaltantes e comoventes. Os corpos são tomados por uma espécie de longo e contagiante delírio em honra de Baco. Eis a nossa loucura sagrada. Quando o Bolero termina e as luzes apagam, regressamos à realidade e à justa medida. Os mistérios terminaram. Ou não.
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