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O coiso

CALONICE (...) Conta lá que assunto é esse que tanto te preocupa. LISÍSTRATA Eu já conto. Mas, antes de falar, vou-vos só fazer uma perguntita, coisa sem importância. CALONICE À vontade. LISÍSTRATA Dos pais dos vossos filhos vocês não têm saudades, quando estão mobilizados em campanha? Que eu bem sei que todas vocês têm o marido fora. CALONICE Isso é verdade. O meu homem, coitado, há cinco meses que está ausente, lá para a Trácia, de sentinela ao... Êucrates. MÍRRINA E o meu, já lá vão sete meses completos, em Pilos. LÂMPITO O meu, mal está de volta do regimento, lá deita outra vez mão ao escudo e põe-che a andar. LISÍSTRATA E nem mesmo amantes nos sobra para amostra. Que desde que os Milésios nos tramaram, nem sequer uma coçadeira de coiro de dois palmos de comprido eu vi, que nos desse ao menos um triste consolo. Será que vocês estariam dispostas, se eu arranjasse uma artimanha, a juntarem-se a mim para acabar com a guerra? CALONICE Bolas, eu estava! Nem que

Nunca mais

GUIL (tenso. Irritado progressivamente ao longo da pantomina, e do comentário) Mas o que é que tu sabes da morte? ACTOR É aquilo que os actores fazem melhor. Têm que aproveitar o talento que lhes foi dado, e o talento deles é: morrer. Sabem morrer heroicamente, comicamente, ironicamente, lentamente, repentinamente, abjectamente, encantadoramente, ou de uma grande altura. (...) GUIL É só o que sabem fazer - morrer? ACTOR Não, não - também matam maravilhosamente. Na verdade, alguns deles matam melhor do que morrem. Os outros morrem melhor do que matam. São uma equipa. ROS E quem é quem? ACTOR Isso não tem grande importância. GUIL (medo, derisão) Actores! os mecânicos do melodrama barato! Isso não é morte! (Mais tranquilo) Vocês gritam, sufocam, caem de joelhos, mas isso não traz morte a ninguém - não apanha ninguém desprevenido para lhe começar a sussurrar dentro do crânio e a dizer - "Um dia vais morrer". (endireita-se) Vocês morrem tantas vezes, como é que podem est

Comer com os olhos

La Mélancolie des Dragons , de Philippe Quesne é uma história de encantar, um conto de fadas que se podia chamar A Branca de Neve e os Sete Metaleiros . Mas a peça é muito mais do que isso. Quesne encena a construção de um poema. Ou melhor, encena a receita para fazer um poema. Como numa lição de culinária, mostra com arte e paciência, um após outro, os ingredientes essenciais: água, vento, fumo, bolas de sabão, neve, árvores, a forma das letras, um projector, um computador, sacos de plástico e um escadote. Não há truques nem segredos especiais. O resultado depende da qualidade dos ingredientes, dos gestos certos, do tempo dedicado a cada tarefa e, como todos os cozinheiros sabem, da bonomia e amor pela arte. A beleza, como sempre, está na mais completa simplicidade. O poema de Quesne é para comer com os olhos.

Corpo ou fantasma?

Thomas toca com os dedos o rosto do homem morto, abandonado no parque, sobre a erva. Thomas tem de ter a certeza de que o corpo é real, de que não é um artifício da sua imaginação. Ele toca-lhe para se assegurar de que não foi engolido pelo seu próprio sonho, de que não foi traído pelos truques da sua própria arte: ele precisa de ter a certeza de que ainda conhece o chão que pisa. Num filme construído a partir de gestos, movimentos, deslocações, este é o gesto mais significativo de todos. A dúvida conduz à verdade, mas também à ficção. Na manhã seguinte, o corpo já não está no local e não há nenhum indício de que alguma vez lá tenha estado. Desapareceu como se nunca tivesse existido. O momento em que Thomas toca no corpo, como S. Tomé  (Saint Thomas, em inglês), é o exacto momento em que a realidade e a ficção se tocam, em que todas as fronteiras se dissipam. Thomas tocou num corpo ou num fantasma? Esta é a chave de Blow Up .

Contrato de arrendamento

A vida inteira não é outra coisa que uma dor continuamente infligida uma grande dor é o que uma vida inteira é todos mentem a si mesmos constantemente toda a vida A igreja substitui o cérebro da generalidade das pessoas põe à disposição de cada um o seu Deus por medida aluga por assim dizer o seu bom Deus E de facto não apenas por noventa e nove anos mas a cada um de modo vitalício e disso é fiadora não me refiro apenas à católica todas as religiões arrendam a cada um o seu bom Deus a fé não é mais que um contrato de arrendamento milhares de milhões de arrendatários pagam anualmente uma renda altíssima às suas igrejas e dessangram-se Thomas Bernhard, Praça dos Heróis . Tradução de Francisco Luís Parreira.

Passado e presente

As coisas mais simples são as mais complexas. Pensemos na memória. Existirá material mais simples e democrático do que a memória? E, no entanto, existirá coisa mais complexa? Em Olhares Lugares , Agnés Varda transforma a memória num material tão simples e vivo como um campo de girassóis. A história, a passagem do tempo, a ruína, que abre rugas profundas no mundo e em nós, transforma-se numa celebração da vida. Porque, muito simplesmente, são a matéria de que todos somos feitos. Uma aldeia de casas abandonadas ou um velho bairro mineiro ameaçado de demolição são lugares vivos porque carregados de memória. Num dos mais belos momentos do filme, Agnés Varda revela que a idade lhe trouxe problemas de visão; as coisas surgem-lhe desfocadas. A visão desfocada de Varda dá-nos a ver o mundo justamente como ele é: um milagre, um milagre feito de sombra e luz, cores esbatidas e nítidas, morte e vida. A simplicidade, isto é, a sabedoria de Varda é uma absoluta lição de arte e génio. Olhares Luga

Dizer o quê?

O nascimento é uma questão? Uma questão com um trejeito, ou um brilho nos olhos. Eu prefiro o termo dor de barriga, uma grande irritação, uma actividade do mais severo e impiedoso que haja, sem pergunta nem resposta, um jogo da vermelhinha, uma necessidade. A necessidade de quê? A necessidade de dizer. Dizer o quê? O que quer que seja para ser dito. O que é que é para ser dito? Nada é para ser dito, tudo é para ser dito. É para ser dito. É dito. Algumas pessoas dizem-no melhor do que outras. Dizem o quê? O que é para ser dito. Porquê? Vou ignorar esta questão. Harold Pinter, Várias vozes. Tradução de Francisco Frazão.

Girondo-Bonomi-Parra

Capa da edição original de Espantapájaros (al alcance de todos) , de Oliverio Girondo, com desenho de José Bonomi , Buenos Aires, Proa, 1932   Desenho de Nicanor Parra , incluído em Artefactos , 1972.

No qual se vejam todos os nervos

A arte não pode ser outra coisa senão a reprodução objectiva de uma realidade psicológica, e esse fim não se alcança procurando mostrar apenas o que se considera revestido de certa dignidade. Um poema deve ser uma espécie de corte praticado na totalidade do ser humano, no qual se vejam todos os nervos, as fibras musculares e os ossos, as artérias e as veias, os pensamentos, as imagens e as sensações, etc., etc.  Nicanor Parra. Carta a Tomás Lago, Oxford, 1949.

O cotovelo dentro do prato

Mas os ritos religiosos não são os únicos. A sociedade impõe mil cerimónias que não passam igualmente de uma espécie de missa permanente que ela oferece a si própria. Um exemplo disso é a maneira de se comer em sociedade. Charlot jamais consegue usar os talheres de modo conveniente. Põe sempre o cotovelo dentro dos pratos, derruba a sopa sobre as calças, etc. O ápice é seguramente quando ele próprio é garçom de restaurante (em Charlot patinador , 1916, por exemplo).  Religioso ou não, o sagrado está presente em toda a vida social, não apenas no magistrado, no policial, no sacerdote, mas no ritual de alimentação, nas relações profissionais, nos transportes públicos. É por ele que a sociedade mantém sua coerência, como em um campo magnético. Inconscientemente, a cada minuto, nos posicionamos segundo suas linhas de força. Mas Charlot é feito de outro metal. Não apenas escapa à sua influência, mas a própria categoria do sagrado não existe para ele, sendo tão inconcebível quanto a rosa pa

A máquina

A máquina inimiga para Chaplin é sobretudo sinal de desumanização, na taylorização imposta pela indústria concorrencial, reduzindo o homem-operário a uma escravatura minuciosamente contabilizada, em tempos e gestos repetidos até à paranóia. O riso que tal situação desperta no espectador é horrivelmente condicionado pela sua própria experiência, de profissão em profissão - e se é a técnica que faz o homem, e não, em última análise, o meio social, o operário americano não se distingue, psicossocialmente, do operário soviético, em transes de Stakhanovismo... A frieza com que Tempos Modernos foi recebido nos Estados Unidos não foi, assim, diferente da suspeição que acompanhou o filme na Rússia, mesmo que a crítica oficiosa com algum mal-estar, procurasse distinguir as duas situações sociopolíticas, reduzindo a americana o destino da mensagem chapliniana. (...) A máquina constitui, na economia do filme, e na proporção da suas cenas, articuladas de gags em gags , a sua parte essencial: um

Quatro por quatro

Imaginemos um díptico. A face da esquerda está em branco. Na face direita podemos ver  A lei do mercado , de Stéphane Brizé. Se, num exercício, tivesse de preencher a face em branco e completar o díptico, escolheria Chronique d'un été , de Jean Rouch e Edgar Morin. Uma das histórias mais impressionantes de Chronique d'un été é a de Angelo, o operário da Renault que diz trabalhar vinte e quatro horas por dia: acorda às cinco da manhã, segue de transporte até à fábrica, cumpre uma jornada de nove horas de trabalho, regressa a casa, come e dorme para recuperar energias, e começa tudo de novo às cinco da manhã do dia seguinte. Um dia após o outro, sem pausas. Dormir, diz ele, faz parte do trabalho. O que mudou entre a história de Angelo e a de Thierry, o personagem de Brizé, que trabalha como segurança num supermercado dos nossos dias para «ganhar a vida»? Em  A lei do mercado , há uma sequência em que Thierry e a mulher estão a aprender a dançar rock, naquele que é o único mo

Contra a angústia da folha em branco

Um dos contos mais famosos de Virgilio Piñera narra a história de um homem que se alimenta literalmente de crianças pequenas, «de poucos meses». Uma espécie de apreciador swiftiano das qualidades gastronómicas da carne de criança. Ora, para alimentar este peculiar capricho gastronómico, o narrador envolve-se em cenas de caça, rigorosamente planeadas e sem margem para erro. O conto intitula-se Algumas crianças e o enredo detém-se num episódio de caça que corre mal, o primeiro e único percalço numa longa carreira de caçadas e repastos bem sucedidos. O homem fica encurralado no interior de um elevador com uma das suas vítimas, em copioso pranto, e na companhia de um pachorrento São Bernardo. No exterior, a mãe, vizinhos e autoridades prepararam-se para capturar o criminoso. O narrador não tem maneira de escapar, é o fim da história. Encurralado, sem recursos, Piñera lança mão de uma outra saída, a saída sobrenatural, o truque de magia: «abri a boca ao São Bernardo e, sem perder um segu

Cipreste

Na primeira cena de Vai e Vem , João Vuvu, o personagem de João César Monteiro, lança um fígado aos pombos. Que espécie de vai e vem há entre esta cena, a primeira do seu último filme, e o mito de Prometeu? Que fogo João César Monteiro roubou aos deuses? No derradeiro plano, esse famoso, comovente e genial último plano , o olho de César Monteiro ocupa toda a tela, olhando-nos de frente. Nesse olho, reflecte-se uma árvore, o amplo cipreste do jardim do Príncipe Real , em Lisboa. A árvore dos mortos que dá sombra aos vivos. O vai e vem entre o mundo dos espectros, “das quimeras”, nas palavras de João Vuvu, e o nosso mundo. É nesse exacto lugar, entre os dois mundos, que se situa toda a arte. O plano dura mais de cinco minutos, o tempo do motete Qui habitat in adjutorio altissimi , de Josquin Des Prés, que se ouve em fundo e cujo texto consiste nos oito primeiros versos do Salmo 90. 1. Tu que habitas sob a protecção do Altíssimo, que moras à sombra do Omnipotente, 2. diz ao Senhor: S

Exercício

Imaginar Chaplin e Keaton, ou Chaplin e Lloyd, a interpretarem, com todos os truques do vaudeville, este conto de Daniil Kharms , o mais chaplinesco dos grandes escritores. PÚCHKIN E GÓGOL GÓGOL cai dos bastidores para o palco, onde fica sossegadamente deitado. PÚCHKIN entra em cena, tropeça em GÓGOL e cai. PÚCHKIN Que raio é ist...! Será possível: parece o Gógol! GÓGOL (levantando-se) Que azar o meu! Já uma pessoa não pode ter sossego.  (Dá dois passos em frente, tropeça em Púchkin e cai.)  Esta é boa: parece-me que tropecei no Púchkin! PÚCHKIN (levantando-se)  Não há um minuto de sossego! (Dá dois passos, tropeça em Gógol e cai.) Mas que raio! Parece-me que voltei a tropeçar no Gógol! GÓGOL (levantando-se) É só incómodos, sempre e em todo o lado! (Dá dois passos em frente, tropeça em Púchkin e cai.) Mas que azar o meu! Outra vez o Púchkin! PÚCHKIN (levantando-se) Isto é uma vadiagem, é o que é! Uma vadiagem! (Dá dois passos em frente, tropeça em Gógol e cai.)  Raios me partam! Out

Manuel Resende

Às vezes ocorrem-me lembranças que não sei se sonhei ou se foi alguém que mas contou. Certas histórias sobre o Manuel Resende, por exemplo. Creio que foi o Osvaldo Silvestre que me disse que o Resende aprendeu alemão a traduzir O Capital , de Karl Marx, uma palavra após outra, com a ajuda de um dicionário. Mais tarde, traduziu o melhor Freud que li em português. E Brecht, Schnitzler, Kafka. Também já não sei se ouvi ou li, ou talvez tenha sonhado, que o título do primeiro livro do Manuel António Pina, Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde , publicado em edição de autor, em 1974, foi-lhe soprado pelo Manuel Resende. Foram colegas de redacção no Jornal de Notícias , companheiros de tertúlia no Piolho e amigos até ao fim. De resto, ainda são amigos e sei que falam todos os dias. Porque os mortos deitaram o corpo dentro de nós. [Resende, 2004] Li o Manuel Resende muito antes de o conhecer pessoalmente. Comecei pela tradução de A Caça ao Snark , do Ca

Um espelho em movimento

A experiência é relativamente simples de descrever. Um personagem vestido de marinheiro deambula à noite por uma cidade - neste caso, o Porto -, carregando às costas uma espécie de máquina de projecção. A máquina projecta um misterioso filme branco, que ondeia e se dissipa no escuro, a partir das costas do personagem. A experiência de Tiago Madaleno , fixada e dada a ver através de um conjunto de slides, como numa espécie de filme em stop motion , parece remeter para O Homem da Máquina de Filmar , de Dziga Vertov. Mas o que Tiago Madaleno faz nesta obra, Passos , é como que a ideia de Vertov invertida por um espelho. O que começa em Vertov, termina em Madaleno. Se Vertov capta a realidade pelo olho da câmara (kino-glaz) , Madaleno muda a realidade pelo olho do projector. Se Vertov filma um dia em Moscovo, Madaleno projecta a luz de um filme na noite do Porto. Se Vertov posiciona o personagem - Mikhail Kaufman - atrás da máquina de filmar, Madaleno coloca o seu personagem - ele próp

Trabalhos de demolição

A memória é uma substância inteiramente maleável. Qualquer coisa elástica, que pode ser mudada, manipulada, apagada, reconstruída, uma e outra vez, vezes sem conta, até ao limite do inumano. Nos primeiros planos de The First Shot,  de Federico Francioni e Yan Cheng, a câmara concentra-se nos movimentos de uma máquina de demolição, empenhada em desmantelar um bairro de casas de tijolo, em Pequim. A facilidade com que derruba paredes, telhados, casas inteiras onde viveram sucessivas gerações, é a mesma com que apagamos certos elementos da nossa memória. As antigas casas de tijolo desaparecem para dar lugar a arranha-céus. Depois da demolição, há velhos que revolvem silenciosamente os escombros em busca de tijolos que possam ser reutilizados. Uma espécie de melancólica arqueologia, que só pode ser desempenhada por velhos, os únicos que conhecem o valor daqueles tijolos e a maneira minuciosa como se combinam para erguer uma casa. Os velhos respigadores transformam-se assim nos guardiõ

Il faut nous donner votre argent...

Com a minha carta de bacharel num canudo, trepei enfim um dia para o alto da Diligência, dizendo adeus às veigas do Mondego. Justamente nesse mesmo tejadilho ia um francês, um commis-voyageur. Era um colosso, de lunetas, duro e brusco, com um queixo maciço de cavalo, que, à maneira que o coche rolava, ia lançando através dos vidros defumados um olhar às terras de lavoura, aos vinhedos, aos pomares, como se os sopesasse e lhes calculasse o valor, torrão a torrão. Não sei porquê, deu-me a impressão de um agiota, estudando as terras dum morgado arruinado. Conversei com este animal; ele pareceu surpreendido da minha facilidade no francês, do meu conhecimento do francês, da política de França, da literatura de França. De facto, eu conhecia romancistas, filósofos franceses, que ele ignorava. E ainda recordo o tom de alta protecção, com que me disse, batendo-me no ombro, enquanto nós rolávamos na estrada, vendo em baixo, no vale, o mosteiro da Batalha:  - Vous avez raison, il faut aimer la F