A memória é uma substância inteiramente maleável. Qualquer coisa elástica, que pode ser mudada, manipulada, apagada, reconstruída, uma e outra vez, vezes sem conta, até ao limite do inumano.
Nos primeiros planos de The First Shot, de Federico Francioni e Yan Cheng, a câmara concentra-se nos movimentos de uma máquina de demolição, empenhada em desmantelar um bairro de casas de tijolo, em Pequim. A facilidade com que derruba paredes, telhados, casas inteiras onde viveram sucessivas gerações, é a mesma com que apagamos certos elementos da nossa memória. As antigas casas de tijolo desaparecem para dar lugar a arranha-céus.
Depois da demolição, há velhos que revolvem silenciosamente os escombros em busca de tijolos que possam ser reutilizados. Uma espécie de melancólica arqueologia, que só pode ser desempenhada por velhos, os únicos que conhecem o valor daqueles tijolos e a maneira minuciosa como se combinam para erguer uma casa. Os velhos respigadores transformam-se assim nos guardiões involuntários de uma certa memória da China.
Mas o filme começa antes da máquina de demolição. Os planos de abertura mostram uma praça debaixo de um violento aguaceiro, em câmara lenta. Grossas gotas de chuva atravessam obliquamente a tela, como balas lentíssimas. Como se existisse uma necessidade urgente de parar o tempo, de voltarmos a olhar para as coisas tal como elas são, frame a frame, fora da velocidade do nosso mundo. A verdade é que nada pode travar o tempo e nenhuma câmara pôde adiar as balas em Tiananmen.
Planos de rios, lagos, poças de água, atravessam todo o filme. Nenhuma memória pode fixar-se na água. A água apaga marcas, sinais, vestígios, abre fendas na pedra. Numa das cenas, há um personagem que revolve com os pés o fundo de uma poça de água da chuva, num chão de betão. Nada deve permanecer, mesmo no leito dos rios e no fundo dos lagos. Nada deve assentar. Tudo deve estar em constante mudança.
Tudo muda a uma velocidade incontrolável. Os personagens parecem viver num estranho tédio gerado pela desordem. Numa das raras cenas faladas do filme, um personagem que esteve emigrado no Canadá, confessa ter regressado a Wuhan, na China, por não conseguir adaptar-se ao ritmo lento do ocidente. Tédio gerado pela velocidade e pela impressão de um mundo em constante transformação. Este é um dos paradoxos mais curiosos do filme.
Mas o principal paradoxo reside obviamente na supressão da memória numa cultura tão antiga como a chinesa. O regime comunista procura esquecer o facto de o país ser uma das grandes potências capitalistas do mundo. O capitalismo chinês procura esquecer todos os constrangimentos ideológicos impostos pelo comunismo. O comunismo procura esquecer a China anterior à revolução. Os jovens procuram esquecer a história trágica do comunismo. O esquecimento, a falta de memória, a ausência do peso da história, ajuda-nos a viver.
Na cena mais impressionante do filme, a câmara fixa um dos personagens, totalmente nu, de costas, caminhando devagar ao longo da Muralha da China. Um corpo despido, sem roupa, sem história, sem referências, em contraste com o monumento mais importante da história da China e um dos mais importantes da humanidade. Haverá imagem mais poderosa sobre a nossa difícil relação com a memória, em todos os tempos e lugares?
Nos primeiros planos de The First Shot, de Federico Francioni e Yan Cheng, a câmara concentra-se nos movimentos de uma máquina de demolição, empenhada em desmantelar um bairro de casas de tijolo, em Pequim. A facilidade com que derruba paredes, telhados, casas inteiras onde viveram sucessivas gerações, é a mesma com que apagamos certos elementos da nossa memória. As antigas casas de tijolo desaparecem para dar lugar a arranha-céus.
Depois da demolição, há velhos que revolvem silenciosamente os escombros em busca de tijolos que possam ser reutilizados. Uma espécie de melancólica arqueologia, que só pode ser desempenhada por velhos, os únicos que conhecem o valor daqueles tijolos e a maneira minuciosa como se combinam para erguer uma casa. Os velhos respigadores transformam-se assim nos guardiões involuntários de uma certa memória da China.
Mas o filme começa antes da máquina de demolição. Os planos de abertura mostram uma praça debaixo de um violento aguaceiro, em câmara lenta. Grossas gotas de chuva atravessam obliquamente a tela, como balas lentíssimas. Como se existisse uma necessidade urgente de parar o tempo, de voltarmos a olhar para as coisas tal como elas são, frame a frame, fora da velocidade do nosso mundo. A verdade é que nada pode travar o tempo e nenhuma câmara pôde adiar as balas em Tiananmen.
Planos de rios, lagos, poças de água, atravessam todo o filme. Nenhuma memória pode fixar-se na água. A água apaga marcas, sinais, vestígios, abre fendas na pedra. Numa das cenas, há um personagem que revolve com os pés o fundo de uma poça de água da chuva, num chão de betão. Nada deve permanecer, mesmo no leito dos rios e no fundo dos lagos. Nada deve assentar. Tudo deve estar em constante mudança.
Tudo muda a uma velocidade incontrolável. Os personagens parecem viver num estranho tédio gerado pela desordem. Numa das raras cenas faladas do filme, um personagem que esteve emigrado no Canadá, confessa ter regressado a Wuhan, na China, por não conseguir adaptar-se ao ritmo lento do ocidente. Tédio gerado pela velocidade e pela impressão de um mundo em constante transformação. Este é um dos paradoxos mais curiosos do filme.
Mas o principal paradoxo reside obviamente na supressão da memória numa cultura tão antiga como a chinesa. O regime comunista procura esquecer o facto de o país ser uma das grandes potências capitalistas do mundo. O capitalismo chinês procura esquecer todos os constrangimentos ideológicos impostos pelo comunismo. O comunismo procura esquecer a China anterior à revolução. Os jovens procuram esquecer a história trágica do comunismo. O esquecimento, a falta de memória, a ausência do peso da história, ajuda-nos a viver.
Na cena mais impressionante do filme, a câmara fixa um dos personagens, totalmente nu, de costas, caminhando devagar ao longo da Muralha da China. Um corpo despido, sem roupa, sem história, sem referências, em contraste com o monumento mais importante da história da China e um dos mais importantes da humanidade. Haverá imagem mais poderosa sobre a nossa difícil relação com a memória, em todos os tempos e lugares?
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