Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

Encontros com Paul Celan

Précis de décomposition (Breviário de Decomposição), o meu primeiro livro escrito em francês, foi publicado pela Gallimard em 1949. Já tinha publicado cinco obras em romeno. Cheguei a Paris em 1937 com uma bolsa do Instituto Francês de Bucareste e nunca mais daqui saí. Mas só em 1947 é que pensei desistir da minha língua nativa. Foi uma decisão repentina. Mudar de idioma aos 37 anos não é tarefa fácil. Na verdade, é um martírio, mas um martírio frutífero, uma aventura que dá sentido ao ser (e como ele precisa disso!). Recomendo a qualquer pessoa que esteja a passar por uma grande depressão lançar-se à conquista de um idioma estrangeiro, para ganhar energias, para se renovar completamente através da Palavra. Sem o meu impulso para conquistar o Francês, podia ter-me suicidado. Uma língua é um continente, um universo, e quem dele se apropria é um conquistador. Mas vamos ao que interessa ...  A tradução alemã do Précis revelou-se difícil. Rowohlt, o editor, contratou uma mulher não q

24-6-947

Dedicatória numa edição de «Conversações com Goethe» , de Eckermann (Livraria Tavares Martins, 1947), que comprei esta manhã na Vandoma: Longe do bulício mundano/ Na paz tranquila do lar/ Será um bom companheiro/ Para ler e meditar.// Oferece a tua mulherzinha,/ Guimarães, 24-6-947. Além da dedicatória, o livro não tem outras marcas de uso. Parece nunca ter sido lido.

Os peixes sonhadores

As postas de salmão já acabaram; a bancada está agora preenchida com as cabeças dos peixes: gordas, em linha, viradas para cima. Reconheço na imagem qualquer coisa de religioso e infantil. Mas é defeito do meu olhar, se fosse verdade ouvir-se-ia música.

Influenciadores do século XX

I don’t quite agree with Marina Harss . Actually it’s the other way around: if you’ve never heard of the Swiss turn-of-the-twentieth-century novelist and short-story writer Robert Walser, you’re utterly  alone.

Dezoito

O meu filho faz hoje dezoito anos. Quando eu tinha dezoito, o meu pai, que teria mais ou menos a idade que tenho agora, repetia vezes sem conta, como uma litania, que «tudo passa num ápice». Lembro-me de Myrtle, a actriz de «Noite de Estreia», de John Cassavetes, e da luta sem tréguas que ela trava com o papel que todos insistem em lhe atribuir: o de uma mulher que perdeu irremediavelmente a juventude. Uma luta cujo resultado será sempre a loucura ou a solidão. Em todo o caso, uma derrota. Ela sabe isso, todos sabemos isso, mas o instinto de sobrevivência força-nos a resistir. O meu filho faz hoje 18 anos. Sim, tudo passou num ápice. É como se recebêssemos uma carta que achamos que não nos pertence, apesar de apresentar no sobrescrito, em letras garrafais, o nosso nome e a nossa morada. É isso, não é, pai?

Influenciadores do século XX

A stark beauty all it’s own

Ando a escrever um texto sobre “Vitalina Varela”. É um trabalho lento, feito à custa da memória e da intuição. Tem tudo para dar torto, o que até nem é mau — pelo menos assemelha-se à arquitectura do bairro. Seguindo os meus próprios conselhos: uso adjectivos com moderação, evito a palavra chiaroscuro,  tento não cair nas comparações com pintores renascentistas. Não consigo, porém, escapar a ligações mais insólitas.

Jogo

De quatro em quatro anos, a um domingo à noite, os comentadores de futebol, num gesto de humildade democrática, cedem o estúdio e a antena aos “politólogos”, para que estes possam analisar as incidências da jornada eleitoral: os vencedores e os vencidos, as tácticas, as jogadas estudadas, as faltas, o desempenho dos presidentes e das oposições internas, mas também o ambiente de balneário nas equipas e, sobretudo, o problema crónico da ausência de adeptos nos locais de jogo.

Depois verá-se

Estas eleições legislativas têm uma particularidade interessante: aos indecisos habituais que nem sabem se vão votar nem em quem, juntam-se agora os indecisos calculistas que seguem as sondagens diárias. São parecidos com os tipos que jogam no placard mas têm mais instrução.

Algoritmo

Não precisamos mais escolher, porque o “algoritmo” escolhe por nós. Nas redes sociais, bots fazem todo um trabalho relacionado ao ódio. No limite, não precisaríamos sequer odiar alguém (para falar de um afeto da moda), porque um “robô” odeia por nós.  Marcia Tiburi.

Influenciadores do século XX

Revolução

— A frase que Alberte diz em  Le Diable probablement : "Não haverá revolução. É demasiado tarde." ( Il n'y aura pas de révolution. C'est trop tard .) pode ser substituída por: "Não houve revolução. É demasiado cedo." ( Il n'y a pas eu de révolution. C'est trop tôt .) Basta rodar um bocadinho o eixo do tempo. — Não num filme de Bresson. — Não. Apenas fora do cinema.

Iguana

Nos últimos dias, a cidade foi tomada por uma vaga de cartazes publicitários a anunciar “seguros de vida em caso de doença oncológica”. Parece ser o novo produto estrela das seguradoras. O seguro não é para quem tem cancro, como é óbvio, mas para quem receia a doença. Penso naquela iguana que aparece e desaparece em  “Isto não é um filme” , de Jafar Panahi. Aquele bicho lento, viscoso, grotesco, ancestral, que observa tudo o que se passa à sua volta. Não é apenas uma metáfora do regime policial do Irão, que vigia e restringe a liberdade do realizador, mas é a imagem de todas as ameaças, reais ou imaginárias, que nos perseguem a todo o momento e de todos os lados. Dentro e fora de nós.

Je rentre à la maison

Na montra da loja de molduras da Rua Antero de Quental, descubro uma pequena reprodução de “The Singing Butler”. Detenho-me a olhar e sinto-me um Michel Piccoli de imitação, longe dos boulevards de Paris e com umas sapatilhas baratas.