Avançar para o conteúdo principal

Encontros com Paul Celan

Précis de décomposition (Breviário de Decomposição), o meu primeiro livro escrito em francês, foi publicado pela Gallimard em 1949. Já tinha publicado cinco obras em romeno. Cheguei a Paris em 1937 com uma bolsa do Instituto Francês de Bucareste e nunca mais daqui saí. Mas só em 1947 é que pensei desistir da minha língua nativa. Foi uma decisão repentina. Mudar de idioma aos 37 anos não é tarefa fácil. Na verdade, é um martírio, mas um martírio frutífero, uma aventura que dá sentido ao ser (e como ele precisa disso!). Recomendo a qualquer pessoa que esteja a passar por uma grande depressão lançar-se à conquista de um idioma estrangeiro, para ganhar energias, para se renovar completamente através da Palavra. Sem o meu impulso para conquistar o Francês, podia ter-me suicidado. Uma língua é um continente, um universo, e quem dele se apropria é um conquistador. Mas vamos ao que interessa ... 

A tradução alemã do Précis revelou-se difícil. Rowohlt, o editor, contratou uma mulher não qualificada, com resultados desastrosos. Era preciso encontrar outra pessoa. Um escritor romeno, Virgil lerunca, que tinha editado uma revista literária na Roménia depois da guerra onde foram publicados os primeiros poemas de Celan, recomendou-o calorosamente. Celan, que eu conhecia apenas de nome, morava no bairro latino como eu. Ao aceitar a minha oferta, Celan começou a trabalhar e fê-lo com uma velocidade impressionante. Via-o com frequência, e ele queria que eu lesse atentamente, capítulo por capítulo, à medida que ele progredia, e oferecesse possíveis sugestões. Nessa época os problemas vertiginosos da tradução ainda me eram estranhos, estava longe de avaliar a sua amplitude. Até a ideia de que alguém pudesse ter um interesse convicto em traduzir parecia-me bastante extravagante. Mas anos depois experimentei uma reversão completa e passei a considerar a tradução como uma tarefa excepcional, como um feito quase igual ao acto de criação. Agora estou certo que o único a entender completamente um livro é alguém que se deu ao trabalho de o traduzir. Regra geral, um bom tradutor vê com mais clareza que o autor. Por estar preso nas garras da sua obra, o autor não pode entender os seus segredos, ou seja, as suas fraquezas e os seus limites. Talvez Celan, para quem as palavras eram a vida e a morte, pudesse partilhar esta posição sobre o ofício da tradução. 

Em 1978, quando Klett estava a reimprimir Lehre vom Zerfall (a versão alemã de Précis), pediram-me para corrigir os erros. Era incapaz de fazer isso sozinho e recusei-me a envolver qualquer outra pessoa. Não se corrige Celan. Alguns meses antes de morrer, ele disse-me que gostaria de rever o texto completo. Sem dúvida teria feito inúmeras revisões pois, não podemos esquecer, a tradução dos Précis remonta ao início de sua carreira como tradutor. É realmente espantoso que um não iniciado em filosofia tenha lidado tão extraordinariamente bem com os problemas inerentes ao uso excessivo, até provocador, do paradoxo que caracteriza o meu livro. 

As relações com esse ser profundamente dilacerado não eram simples. Ele apegava-se ao preconceito contra este ou aquele, alimentava a desconfiança, ainda mais por causa do medo patológico de ser ferido, e tudo o magoava. A menor indelicadeza, mesmo não intencional, afectava-o irrevogavelmente. Vigilante, defensivo contra o que podia acontecer, esperava a mesma atenção dos outros e detestava a atitude descontraída tão predominante entre os parisienses, escritores ou não. Um dia encontrei-o na rua. Estava furioso, num estado próximo do desespero, porque X, a quem ele convidara para jantar, não se deu ao trabalho de aparecer. Calma, disse-lhe eu, X é mesmo assim, é conhecido por estar-se nas tintas. O único erro foi esperar por ele. 

Naquela época, Celan levava uma vida muito modesta e não conseguia encontrar um emprego decente. Era difícil imaginá-lo num escritório. Por causa da sua natureza morbidamente sensível, quase perdeu a sua única oportunidade. Num dia em que ia almoçar a sua casa, descobri que havia uma vaga para professor de alemão na École Normale Supérieure, e que a nomeação estava iminente. Tentei convencer Celan de que era crucial apelar ao especialista alemão que tinha em mãos esse assunto. Ele respondeu que não faria nada a esse respeito, que o professor em questão o tratava com frieza e que não podia suportar por nenhum preço a rejeição que, segundo ele, era certa. Inútil insistir. Ao chegar a casa, porém, ocorreu-me enviar-lhe, por correio pneumático, uma mensagem na qual demonstrava a loucura de deixar escapar essa oportunidade. Por fim, ele ligou para o professor e o assunto resolveu-se em alguns minutos. "Estava errado sobre ele", disse-me mais tarde. Não vou ao ponto de dizer que ele via um inimigo potencial em todos os homens; mas na verdade vivia com medo da decepção ou traição total. A incapacidade de ser desapegado ou cínico transformou a sua vida num pesadelo. Nunca hei-de esquecer a noite que passei com ele quando, por ciúme literário, a viúva de um poeta lançou uma campanha indescritivelmente vil contra ele em França e na Alemanha, acusando-o de ter plagiado o marido. "Não há ninguém no mundo mais infeliz do que eu", dizia Celan. O orgulho não acalma a fúria, ainda menos o desespero. 

Algo dentro dele deve ter sido quebrado muito cedo, mesmo antes dos infortúnios que caíram sobre o seu povo e sobre si mesmo. Lembro-me de uma tarde de verão passada na adorável casa de campo da sua mulher, a cerca de sessenta quilómetros de Paris. Era um dia magnífico. Tudo invocava descontracção, felicidade, ilusão. Celan, numa espreguiçadeira, tentou, sem sucesso, estar bem-disposto. Parecia estranho, como se não pertencesse ali, como se aquele esplendor não fosse para ele. Que procuro eu aqui? deve ter pensado. E, de facto, que procurava ele na inocência daquele jardim, aquele homem culpado de ser infeliz e condenado a não encontrar o seu lugar em lado nenhum? Seria errado dizer que me sentia constrangido; mas, na verdade, tudo no meu anfitrião, incluindo o seu sorriso, estava assombrado por um encanto doloroso e qualquer coisa como uma sensação de não-futuro. 

É um privilégio ou uma maldição ser marcado pelo infortúnio? Ambos ao mesmo tempo. Essa dupla face define a tragédia. Celan era uma figura, um ser trágico. E por isso ele é para nós mais que um poeta. 

Comentários