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Mensagens

Influenciadores do século XX

Fotografia

Nos serviços do cartão de cidadão, o funcionário mandou-me tirar os óculos para a fotografia. Depois, perguntou-me se estava satisfeito com a imagem que aparecia no ecrã da máquina. Respondi que sim, embora a fotografia mostrasse um tipo sem óculos e bastante desfocado, que eu jamais conseguiria reconhecer.

Joker

Museu Internacional Escultura Contemporânea de Santo Tirso  |  Folha de Sala  |  Catálogo

Um dia, não tinha ninguém

Não é por acaso que Casanova inclui digressões sobre a dança e a pintura. Existe, por exemplo, numa igreja de Madrid, um belíssimo quadro da Virgem e do menino. O colo elegante da Virgem excita a sensualidade. Os devotos afluem a esta igreja e nela deixam muito dinheiro. Um dia, não tinha ninguém. Intrigado, Casanova entra e constata que o novo capelão pintara um lenço no seio da Virgem. (...) Em Veneza, diz-lhe Casanova, ter-vos-iam imediatamente condenado aos Piombos por este crime. «Não conseguia dizer a missa, responde-lhe o jovem padre, porque aquele belo seio me perturbava.» Philippe Sollers, Casanova, o Admirável . Tradução de Maria Irene Bigotte de Carvalho.
Tipo, estás a ver? Podia ser o nome de uma peça de teatro em que todas as personagens são bolas de espelhos. Era apenas um rapaz e uma rapariga em conversa mole no autocarro.

Como um cão a olhar para o dedo

É um livro pequeno — lê-se numa tarde —, mas deixa um rasto impressionante. Começa logo pelo título: “Raparigas de Escassos Recursos”. Ora, as raparigas nunca são de escassos recursos , menos ainda no fim da Segunda Guerra Mundial em Londres. A ironia atravessa também a história e o modo de a escrever. Muriel Spark recorre a tempos e registos diferentes para criar uma novela que tem mais ou menos o ritmo de  Ein musikalischer Spaß : passagens cómicas misturam-se com versos de poemas clássicos, costumes velhos, ousadias, papel de parede, um vestido  Schiaparelli  partilhado e mais ainda. Toda esta trama culmina na explosão de uma bomba perdida e na morte de um poeta convertido. O divertimento, como aliás tantas vezes em Mozart, dá lugar a uma tristeza miudinha e é disso que é difícil livrarmo-nos. Outra curiosidade de “Raparigas de escassos recursos” é que Muriel Spark aponta para coisas diversas (raparigas, um edifício, a cidade, os restos da guerra, etc.), mas reagi sempre como um

Propriedades incandescentes

O trabalho intelectual de Jane era de três tipos. Em primeiro lugar, e em segredo, escrevia poesia de uma natureza absolutamente não racional, em que ocorriam, mais ou menos na mesma proporção das cerejas num bolo de cereja, certas palavras que ela descrevia como tendo “propriedades incandescentes”, tais como flancos e amantes, a raiz, a rosa, a alga e a mortalha. “Raparigas de Escassos Recursos”, de Muriel Spark, tradução de Margarida Vale de Gato, edição da Relógio d’ Água, página 39.

Porta

Na sala onde velávamos o corpo da nossa velha amiga, no Crematório da Lapa, alguém tinha pousado, atrás da porta, um saco do hospital, meio transparente. No interior, as últimas roupas e objectos que ela tinha usado.

Influenciadores do século XX

Navio fantasma

«É o nevoeiro no Tejo que tem feito um navio buzinar toda a noite.» Leio este título no jornal. Fecho os olhos, ei-lo: o vago vulto de um navio, preso no nevoeiro, a trezentos quilómetros de distância, lamentando a sua fraca sorte de fantasma, uivando no fundo do meu ouvido.

Doppelgänger de Emil Cioran

Vi-o à porta da confeitaria Favo de Mel na rotunda da Boavista. Calças pretas, justas, um pouco curtas. Camisa vermelha aos quadrados. Sapatos pretos. O cabelo atirado para trás. Podia ser músico punk ou estafeta da Uber Eats. Era um Doppelgänger jovem de Emil Cioran.

1 de Janeiro

31 de Dezembro

Último dia do ano. Ocorrem-me duas imagens de Gangbyeon hotel . A primeira é a da queimadura na mão esquerda da personagem feminina, Ah-reum. E a segunda é a da enorme planta ornamental no bar do hotel que, nas palavras do velho poeta, Yeong-hwan, precisa de ser regada.

Reescrever Casanova

Jean Laforgue, no século XIX, era professor de francês. Trata-se de um laico escrupuloso e sério como os que se fabricavam na época. Pedem-lhe para reescrever Casanova. Mete mãos à obra. Pára nesta frase a propósito de mulheres: "Sempre achei que aquela que eu amava cheirava bem, e quanto mais forte era a sua transpiração, mais suave ela me parecia." Laforgue reflectiu trinta segundos. Não, no século XIX (como acontece hoje, aliás), uma mulher não transpira . Corrige então esta incongruência e escreve: "Quanto às mulheres, sempre achei suave o odor daqueles que amei." Philippe Solers, Casanova, o Admirável . Tradução de Maria Irene Bigotte de Carvalho.
Só tenho jeito para coisas pequenas. Mas às vezes gosto de imaginar edifícios enormes, cheios de pormenores — projectos para abandonar a meio. Por exemplo: um curso de literatura através dos filmes de Godard, à deriva, com pistas falsas e becos sem saída. Podia começar aqui: La poésie, c'est qui perd gagne.

X + 3 = 1

Nota-se nos filmes e nas entrevistas, Godard — e isso quer dizer cada vez mais “o pensamento Godard” — assemelha-se a um monte de silvas, dessas que crescem por aí nos descampados, cheias de espinhos, cobertas de pó. As amoras estão quase todas fora do nosso alcance. Para as apanhar, arranhamos as pernas, os braços e as mãos.

Amo-te Joana

Num painel informativo da estação de metro do Marquês, alguém escreveu: «Amo-te Joana Couto-S. Teu… Hugo.» Podem cortar as árvores dos jardins e derrubar todos os muros. Os livros podem acabar, a literatura desaparecer, o papel extinguir-se. Mas nunca acabarão as declarações apaixonadas por escrito, em locais públicos ou proibidos. Talvez esta seja a prova definitiva da nossa fé no poder da escrita. Mesmo quando o amor se apagar, restarão aquelas longas e perenes reticências.