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Mensagens

Ajuda a viver

Pierre Assouline: Foi a leitura do Cioran que o acalmou?  Jean-Luc Godard: Ela corresponde à minha queda para o aforismo, a síntese, os provérbios. Este gosto talvez me venha das fórmulas científicas. O aforismo resume qualquer coisa mas permite outros desenvolvimentos. Como um nó: pode ser feito em vários sentidos, não impede que quando é feito, o sapato fique preso. Não é um pensamento, mas um traço do pensamento. E Cioran, leio-o sempre em todos os sentidos. É muito bem escrito. Com ele, o espírito transforma a matéria. Cioran dá-me uma matéria que alimenta o espírito.  PA: Mas o que o atrai tanto nos aforismos? JLG: O seu lado de átrio de estação central. Entramos, saímos, voltamos. Se encontrarmos um bom pensamento, podemos permanecer nele muito tempo. Depois levamo-lo connosco. Não é preciso ler tudo. Pessoa, de quem também gosto muito, é demasiado negro enquanto Cioran ajuda a viver. É uma forma de pensamento diferente do pensamento com começo, meio e fim. Não conta uma hist

Nana

 

Hierarquias

Nos Estados Unidos, fazer distinções hierárquicas a propósito de cultura era a única linguagem aceitável de que as pessoas dispunham para se falar abertamente de classe. Em países menos igualitários, como a pátria de Tina Brown [Inglaterra], existia já uma hierarquia social baseada em classes antes do desenvolvimento de uma hierarquia cultural, pelo que que as pessoas podiam dar-se ao luxo de misturar cultura comercial e elitista - os Monty Phyton, por exemplo, ou Tom Stoppard, ou Laurence Olivier - sem comprometer gravemente a sua posição enquanto membros da classe superior. Porém, nos Estados Unidos, as pessoas precisavam das distinções de highbrow e lowbrow para que cumprissem a função que noutros países era cumprida pela hierarquia social. Qualquer pessoa rica podia comprar uma mansão, mas nem toda a gente podia cultivar um interesse ardente por Arnold Schönberg ou John Cage. John Seabrook, Nobrow: The Culture of Marketing, The Marketing of Culture . Citado por Hal Foster, em De

Conjunção aditiva

Gosto do campo — e vivo numa metrópole; detesto estilo e vigio as minhas frases; sou um céptico incorrigível — e leio principalmente os místicos ... e podia continuar assim indefinidamente. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 Nota: O melhor deste aforismo é a conjunção usada para ligar as duas orações. Seria de esperar uma conjunção adversativa, mas Cioran escolhe uma conjunção aditiva — como Godard (não me lembro do link).

A palavra retoma consciência

Ao utilizarmos as palavras correntes esquecemo-nos de que são fragmentos de histórias remotas e eternas, e que construímos - como os antigos - a nossa casa com estilhaços das estátuas dos deuses. Os nossos conceitos e termos mais concretos são derivações muito remotas dos mitos e das histórias antigas. Não há um único átomo nas nossas ideias que não provenha daí, que não seja uma mitologia transformada, estropiada ou alterada. (...) A poesia reconhece o sentido perdido, restitui as palavras ao seu lugar, enlaça-as de acordo com certos significados. Manejada por um poeta, a palavra retoma consciência, digamos assim, do seu sentido primevo, desabrocha espontaneamente segundo as suas próprias leis, recupera a sua integridade. Bruno Schulz, A mitificação da realidade . Tradução de Patrícia Guerreiro Nunes.

Rússia no Porto

Vladimiro tem nome russo, mas o apelido (e o resto, meu deus!) destrói a promessa; percebe-se logo que é um falso russo (nem sequer um comissário do Ninotchka). Já o Tiago Barbosa Ribeiro — oh, basta escolher bem o enquadramento do rosto: parece que acabou de sair de um romance de Dostoiévski, quer dizer, parece que ainda lá está; um Karamazov temperamental. Não sei se é o meu candidato, mas é a minha personagem preferida. Dele, espero uma campanha febril, declarações estrondosas, ideias para encher a alma de desespero.

Família

Leio no jornal que Alfred Brendel estudou piano com Ludovica von Kaan, que tinha sido aluna de Bernhard Stavenhagen, que, por sua vez, tinha aprendido com Franz Liszt. Eis a mais estranha descrição de um jazigo de família, num cemitério de Viena.

Mercado de amenidades

O arraial de Santo António da Iniciativa Liberal parece um parque temático para endinheirados. Não tem os tipos falhados que encontramos nos contos de Saunders, é tudo gente que sabe vestir-se para as ocasiões . Lembrei-me da cena do filme do Botelho com a Rosa Lobato Faria a comer sardinhas assadas de luvas brancas (raízes históricas). E também me lembrei do Ruca (simbolismo espontâneo).

Sépala, pétala, espinho. / Na vulgar manhã de Verão —

“It is finished’ can never be said of us,” Emily Dickinson once wrote, and certainly there is nothing finished about Emily Dickinson. (...) Dickinson’s poems seem always to be in progress or in transit; she revised, reconsidered, and reconceived them, particularly when sending them to friends, as her very first editors would discover—and as editors keep discovering today.(...) To Dickinson, then, it seems that literature was partly improvisation, much like her inventions at the piano, which were affectionately recalled by all who heard them. She toyed with several possibilities for an individual word while playing with image patterns, line arrangement, and metrics; she did not necessarily prefer one variation over another; she did not indicate when or if a poem was “finished.” What’s more, she frequently composed on snippets of paper—newspaper clippings, cut-up paper sacks—or around the edges of thin sheets, her cursive often illegible. (...)

Filhos

No ano passado, o casal de gaivotas que faz o ninho no telhado da frente, teve uma cria. Este ano, são três. Três pequenos demónios de penugem cinzenta, aos trambolhões por entre as telhas. Os pais, incansáveis e cheios de paciência, esfalfam-se para os alimentar. Não há pausas. As crias parecem continuamente esfomeadas. Seguindo o voo das gaivotas, lembro-me, de repente, do filme de Hirokazu Kore-eda, Ninguém Sabe . A duríssima história dos quatro irmãos pequenos abandonados pela mãe, aos trambolhões num pequeno apartamento de Tóquio. Sem água, sem luz, sem comida, sem mãe nem pai. Apenas asas.

Personagem

Há um filme oriental — talvez seja os ladrões de lojas? — em que um homem e uma mulher falam do cheiro do alho francês que se entranha na pele. Acho que estou a transformar-me nessa personagem.

And that's my weakness now!

— Deixe a janela aberta, por favor. O ar morno do início do Verão invadiu o quarto. O cheiro a ruas poeirentas, o cheiro particular do Tâmisa, um cheiro fresco a algo putrefacto e fermentado, misturava-se com um vago aroma a flores.  O último capítulo é tremendo. Passa-se no quarto de Bruno. É só ele e Diana. Falam um com o outro, pouco. Falam mais com os pensamentos e o passado. Choram (por distracção). Há uma cena de morte (mosca) e libertação (aranha). O roupão de Bruno, pendurado na porta como a chave de um enigma. Bruno está a morrer. Diana é uma mulher diferente. No fim, as notas de tradução (gentileza de Vasco Gato) parecem o genérico de um filme, quando já toda a gente saiu da sala com pressa (de quê?) e ficamos sozinhos enquanto os nomes passam na tela escura; ouve-se uma canção e não conseguimos, ou não queremos, sair da história. Do sonho. ( A realidade é demasiado difícil. )

Pouco apreço

Émile Zola, evidentemente, apressara-se a explorar a tese darwiniana segundo a qual o homem, assim como os restantes animais, tem de se adaptar ao seu meio ambiente; mas Ibsen detestava ser comparado a Zola, por quem tinha pouco apreço. “Zola”, comentou o dramaturgo certa vez, “desce ao esgoto para se banhar nele, e eu para o purificar.” Não sabemos ao certo até que ponto Ibsen conhecia a obra de Zola. Em 1882, o dramaturgo confessou a William Archer que não tinha lido nenhum dos seus livros. Michael Meyer , Espectros. Manual de Leitura.

Os que regressam

Espectros , de Ibsen. Na  encenação de Nuno Cardoso , o fantasma do Capitão Alving está literalmente em palco ao longo de toda a peça. Move-se entre os vivos, senta-se à mesa com eles, olha-os nos olhos, fuma e bebe, está em sua casa. Não é só um espectro, é uma força viva. Acompanhando de perto os gestos do fantasma (Rodrigo Santos), não sei se é ele que assombra a existência dos vivos ou se são os vivos os verdadeiros fantasmas que assombram e aterrorizam o espectro do Capitão Alving.

O texto certo

É o que nos diz a história canónica. Mas a história oficial é incompleta. Tem lacunas propositadas, longos intervalos e reticências nas quais logo se instala a Primavera. Ela cobre rapidamente as lacunas com a sua marginália, paga um preço exagerado com a folhagem que cai em abundância, que cresce desafiante, que engana com os disparates dos pássaros, com a disputa desses seres alados, cheia de contradições e mentiras, perguntas ingénuas sem resposta, repetições contumazes e pretensiosas. É preciso muita paciência para encontrar o texto certo no meio dessa lengalenga. Bruno Schulz, Sanatório sob o signo da clepsidra . Tradução de Henryk Siewierski.