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Mensagens

Fundo e superfície

Na linha Porto-Gaia, pouco depois de São Bento, o metro irrompe inesperadamente do fundo para a superfície. Na verdade, o metro voa do túnel para a ponte e, num segundo, estamos a correr entre as nuvens. Transposta a ponte, desvio de novo o olhar para o livro, e leio: «São tempos singulares, estes em que vivemos. Tempos em que grandes agitações de superfície conseguem fazer-se passar por reais transformações de fundo. (...) Os homens mudam, dir-se-á. Sem dúvida, e tanto mais facilmente quanto se lhes der a possibilidade de parecerem mudar . A ilusão da mudança poupa com efeito a muitos deles dilacerações cornelianas entre os interesses e as convicções. Tal como essas viagens que se empreendem sem uma pessoa sair de onde está sentada, deixando simplesmente que umas às outras se sucedam as paisagens móveis dum diorama...» (Georges Henein.)

Little gray man

Foi pelo efeito tronante que Rui Moreira chamou “o Putin de Paranhos” a Alberto Machado. É uma descrição inexacta; já sigo a carreira do militante do PSD de Paranhos há algum tempo (assim como segui a ascensão do Marco António em Valongo, atraem-me as personagens secundárias) e acho mais adequado roubar a expressão ao Errol Morris e chamar-lhe little gray man . Ou, traduzindo para português de rua: uma ratazana .

Película negra

O que se está a passar no PSD parece uma série de televisão: uma sequência de cenas com guião previsível, personagens balofas, frases espampanantes. A temporada de Rio acaba (laranja puro ), sucede-se a de Rangel (sobre fundo azul) — como nas séries, é sempre a mesma coisa ruminada. Infelizmente, na realidade não há botão para desligar o aparelho. Precisávamos, talvez, de um bocado de película negra. Mas como é que se faz essa montagem?

Biodiversidade

Leio no jornal que doze empresários de grandes grupos mundiais, como a Unilever, a H&M ou o Rabobank, escreveram uma carta aberta onde acusam os governos de «não estarem a fazer o suficiente para preservar a biodiversidade». Terei lido bem? Talvez o jornalista se tenha enganado e o verbo não é «fazer», mas «pagar»: os governos não estão a pagar o suficiente aos empresários para estes preservarem a biodiversidade. Ou isto ou Jonathan Swift voltou do mundo dos mortos, vestiu um moderno e liberal fato de empresário e está a divertir-se, como sempre, à nossa custa.

Nervos | Ilusão | Sonhei que fodia contigo

Rua Mártires da Liberdade, Porto. 

Cansaço

Por estes dias, o comentário político nos jornais está dominado por duas palavras: «cansaço» e «desgaste». «O cansaço do governo» e «o desgaste do governo». Alguns comentadores mais impacientes acrescentam ao cansaço e ao desgaste, «uma certa arrogância do governo». E insistem nisto até à náusea, na esperança de que o comentário, mil vezes repetido, se transforme em verdade. O cansaço e o desgaste, no entanto, são obviamente dos comentadores. Falta novidade, falta drama, falta sangue. Os comentadores estão cansados de esperar que o governo se desfaça por dentro e impluda de vez. Como sempre, não lhes ocorre melhor ideia.

(como nas ilhas)

Verão tardio é o verão já fora da estação; atrasado; serôdio (palavra formidável para usar nos debates parlamentares). Mas se seguirmos a tendência deste outubro suave, acho que podemos arrastar a expressão para outro significado: o verão que só vem à tarde, como no filme do Rohmer; uma ocupação meteorológica em part-time (como nas ilhas).

Nesse tempo era sempre uma festa

Só descobri hoje que saiu uma nova tradução d' O Belo Verão (a capa de João da Câmara Leme para a Portugália é mais bonita, mas esta edição resgata o adjectivo). Pode ser mais um sinal do meu crescente alheamento do mundo. Por outro lado, ler Pavese neste verão tardio e sem futuro é um gesto intimamente  pavesiano .
 

Abertura

Um tipo a enterrar uma mala com dinheiro roubado, no meio de uma enorme clareira coberta de neve.  Imagino um filme perfeito, feito a partir de excertos de outros filmes. Esta sequência, de The Criminal , de Joseph Losey, seria o ponto de partida.