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Mensagens

Saída

A história não é circular, obviamente. Mas parece. Estamos convencidos de que avançamos, mas na verdade andamos às voltas. Exactamente como os personagens de La Mort en ce Jardin , de Buñuel. Por mais esforço que façamos para encontrar uma saída, voltamos sempre ao mesmo sítio. Outra imagem: leões às voltas numa jaula.

Certezas

Um rinoceronte a tecer observações sobre uma escultura de Brancusi. A ideia é de Cortázar e surge num certo livro a propósito de outra coisa. É exactamente assim que me sinto. Um paquiderme desesperado a tentar formar alguma ideia mais ou menos firme sobre estes dias sombrios. Gostava de ter as mesmas certezas dos comentadores das televisões. As mesmas opiniões sólidas, sem margem para dúvidas, dos cronistas de jornal. Não, não gostava. Ter certezas é muito pior.

Petróleo

Na televisão, uma mulher em fuga cai junto à berma de uma estrada. A mulher cai uma vez, cai duas vezes, cai três vezes. Um tipo está sentado no estúdio a comentar. Diz qualquer coisa sobre petróleo. A realização repete a imagem em loop . A mulher cai quatro vezes, cinco vezes, seis vezes. O tipo continua a dizer qualquer coisa sobre petróleo. A mulher cai sete, oito, nove, dez vezes. O tipo fala sobre petróleo. A mulher cai onze vezes, doze vezes, treze, catorze, quinze vezes. Petróleo. Dezasseis, dezassete, dezoito. O tipo fala de petróleo.

Anoitece

Leio nos jornais que cidadãos europeus negros, africanos, de origem asiática e do médio oriente que tentam fugir aos tanques de Putin são barrados na fronteira por soldados ucranianos: primeiro passam os brancos. Do outro lado da fronteira, na Polónia, os mesmos refugiados são alvo de ataques xenófobos e racistas por parte de nacionalistas polacos: «segundo a polícia polaca, os agressores, vestidos de preto, agrediram grupos de refugiados não brancos, nomeadamente estudantes que tinham acabado de chegar à estação de comboios de Przemyśl.» Em Portugal, cidadãos russos são alvo de ameaças e actos de descriminação, que «chegam em forma de telefonemas, mensagens de texto ou comentários nas redes sociais». Nas televisões, os repórteres que acompanham a vaga de refugiados não se cansam de repetir que os ucranianos são «pessoas como nós», usam as mesmas roupas, os mesmos telemóveis, os mesmos carros. Não são afegãos, sírios, iraquianos ou sudaneses a fugirem em botes pelo Mediterrâneo. São «i

Civilização

«Comecei a olhar para o chão em vez de olhar para o céu. Comecei a olhar para o que as pessoas deitam fora em vez de para aquilo que os arquitectos constroem.»

Palavras de ordem

Uma sequência de Noite Incerta , de Payal Kapadia: os estudantes do Instituto de Cinema e Televisão da Índia manifestam-se contra o novo director da escola, nomeado pelo governo nacionalista hindu; nos protestos, gritam-se palavras de ordem como «Eisenstein, Pudovkin, vamos ganhar».
Bradar aos céus. Podia dia ser o título de uma colectânea de Emil Cioran. A meio caminho entre a poesia dos anjos caídos e a desafinação do death metal.

Guerra

Leio o que posso sobre a invasão da Ucrânia pelas tropas do governo russo e não consigo compreender. Quem ganha com esta guerra? E ganha o quê? Quem perde, sabemo-lo bem: os sempiternos perdedores, os pobres da Ucrânia, da Rússia e de toda a parte, os que não têm meios para se defender das agressões do mundo. Mas o que ganham exactamente os «vencedores»? Trata-se somente de somar mais poder e dinheiro? Se é só uma questão de poder e dinheiro, não consigo compreender. Ou há mais alguma coisa? Provar que se pode desafiar directamente a morte? Ter nas mãos o destino de um número infindável de pessoas? Ser-se deus? Jogar com a nossa estranha atracção pelo fim do mundo?

Os nossos especialistas

Abra-se um jornal, ligue-se a rádio, veja-se a televisão. Impressiona o repentino número de especialistas portugueses em história e cultura russas. No meio de todo este frenesim de conhecimento, fica-se com a certeza de que os nossos bulímicos especialistas sabem coisas sobre os russos que os próprios russos ignoram.

A tua mais completa tradução

Ao mesmo tempo que tento arranjar as palavras mais convenientes para traduzir as confissões e pensamentos irrequietos dos Cadernos , alguma coisa acontece — não é bem uma influência, é mais da ordem do parentesco, creio.  Dou por mim a querer oferecer coisas a Cioran; até um cão já me passou pela cabeça.  Dou por mim a vê-lo como um mestre de artes performativas  ( que, ao ser proferido, corresponde à acção a que se refere ). Começa por fazer de filósofo, de escritor, de místico, de estrangeiro, etc., mas o grande golpe é quando interpreta o ser humano — aí, Cioran supera-se.  As lágrimas, de novo. Uma palavra irradiante.

Extraterrestres

Ontem à noite vi na televisão Viva la Vie , um dos filmes esquecidos de Claude Lelouch. Estava cansado e sem vontade de fazer nada. O filme não é grande coisa. Uma história dentro de outra história, e ambas dentro de um sonho. Ou o contrário. Não sei bem. Não é isso que interessa. O filme passa-se em plena guerra fria. Os ricos constroem abrigos nucleares nas piscinas. Os criados compram fatos de borracha para se protegerem das radiações. No sonho de um dos personagens (Michel Piccoli), a guerra nuclear é evitada através de um simulacro que envolve seres alienígenas: os extraterrestres não estão interessados em explorar um planeta inviável, sem seres humanos e carregado de radiação. Entretanto, na Ucrânia os «esforços diplomáticos» não deram em nada. Nos jornais, a guerra parece «inevitável». Os «enviados especiais» das televisões ao teatro dos acontecimentos estão a fazer o seu trabalho em «condições muito difíceis». Quem nos salva disto? Quem nos protege da humanidade? Onde estão os

Mais depressa, mais depressa

O contrato prevê um horário flexível, em que o trabalhador é convocado de véspera. Da mesma forma, pode ser dispensado, se a mensagem pretendida pelo patrão for de penalização ou intimidação. Além de tudo isto, aquilo que mais perturba alguns dos manifestantes do dia 11 de Fevereiro, em frente à própria empresa, é “a permanente pressão psicológica”. “Querem que a gente ande cada vez mais depressa, a colher as bagas com movimentos dos braços sem parar. Estão em cima de nós, a gritar: ‘Mais depressa, mais depressa’”, diz Robin Thapa, também nepalês, disposto a protestar. “É muito duro. Estamos a trabalhar num ambiente quente, dentro das estufas, e só podemos beber a água que trazemos de casa. Às vezes por mais de oito ou 10 horas”, diz Pramila. “Se bebemos toda a que trazemos, pedimos, mas eles não nos dão, recusam. Se protestamos, chegam a mandar-nos para casa”, salienta Pramila. “A pressão psicológica faz-nos mal.” Quem não cumpre o objectivo de encher um determinado número de caixas n

Ah, as laranjas.

De alguma forma parece um paradoxo: um inverno tão seco e por todo o lado, nos quintais mais pequenos, principalmente nos subúrbios, as árvores carregadas de laranjas, tangerinas, tangeras e limões. Nos mercados, os citrinos a menos de um euro o quilo. A vizinha que me deixa laranjas à porta ( ninguém as quer ). Quase dá para acreditar, como em Cioran ou nas tragédias gregas, num deus trocista, e ácido.