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Mensagens

Cimeira dos passos perdidos

Para além das palavras (banir os trabalhadores, saturar a resiliência, afrouxar a disrupção, etc. etc.), as agências de comunicação também deram cabo das camisas brancas. Vesti-me como Asako e afinal parece que vou para uma cimeira.

Gralha

Num dos textos de Grãos de Pólen , Fernando Guerreiro escreve sobre as emendas a lápis que faz nos seus próprios livros e que constituem «uma marca do seu constante inacabamento»: «Essa errata permanente do texto (...) tem a ver com o simples facto de que dou erros e que, sendo míope, mesmo revendo as provas há sempre coisas que me escapam.» A única gralha que encontrei no livro, pelo menos até agora, aparece exactamente no início desse texto. A palavra «desaparecimento» está grafada «desaparecimenrto». Não interessa se o erro é voluntário ou não. É um momento de pura epifania.

Tango gregueríano (operação Ramón e um palito)

Não me saiu nada na raspadinha (o destino despreza sempre as boas intenções literárias, raisoparta), mas já desviei 21 euros para ajudar o querido Ramón a pagar à gráfica .

Tango finlandês

Às vezes a entrada envidraçada do abandonado Hotel Nave parece uma cena do Kaurismäki: mantas de diversas cores e sacos de supermercado cheios. Dois homens sentados em cadeiras — calados. Bebem (vodka ou cerveja?) e ouvem música (em língua russa?) Nem de propósito, no JN de hoje: (...) Sobre o aumento do número de sem-abrigo na cidade, Fernando Paulo salientou que o Porto tem "uma forte atratividade" para as pessoas em Situação de Sem Abrigo (...)   Por este andar, “a forte atratividade” ainda há-de aparecer na Monocle em fine papers.

A Grécia de que falas

Bastava o nome Manuel Resende ou, se quisesse somar qualidades, o trabalho meticuloso do Rui Manuel Amaral e da Tatiana Faia, a intrepidez editorial da Língua Morta. Mas não foi nada disso, o amor também tem minudências: abri o livro à sorte, encontrei a palavra “ganapos” na página 149 e caí na armadilha de uma relação inevitável.

Mesa de São João

Sem saber, herdei da minha avó um jeito especial para cozinhar. Hoje resolvi homenagear a aldeia de Moreanes (e a Adriana) ao almoço: costeletas de borrego com favas e hortelã para acompanhar vinho da casta baga. Agora vinha mesmo a calhar mais um filme do Hong Sang-soo no Trindade.  Como não há, vou ter de o imaginar.

Utopia

(...) Apesar de não ser considerado um dissidente, Boris Barnet situava-se claramente fora do cinema soviético instituído. Os seus filmes eram demasiado inclassificáveis e, digamos, de uma natureza mais dionisíaca do que real socialista. Foi o que aconteceu com À Beira do Mar Azul , realizado em 1936. Ninguém compreendeu o filme, atacaram o argumento simples, fútil, emocional, uma realização demasiado feérica e pouco credível. Mas de que serve uma história num filme, se todo ele é ritmo? De que serve uma imagem frouxa da realidade, se temos à nossa frente um confronto íntimo com os homens, os seus sentimentos, a sua gravidade e a sua leveza, o maravilhoso desequilíbrio humano? A beleza e graça que passam pelos corpos e pelos planos (a «alegria física dos encontros», de que fala Bernard Eisenschitz ), deixou indiferente a crítica. E, no entanto, agora à distância, percebemos bem que esta pequena aventura numa ilha perdida ao Sul do Cáspio, em que os heróis afogam-se e renascem, chegam e

Escravos

Há um pequeno conto de Giorgio Manganelli que, filmado por Stéphane Brizé, podia ser uma versão alternativa, com ligeiras alterações, do seu mais recente filme, Um Outro Mundo . É o conto oitenta e um, de Centúria : Na cidade governada pela Princesa Sanguinária, todos os homens, uma vez ou outra, se apaixonam pela Princesa, e se apresentam na corte para pedi-la em casamento. Ela nunca diz que não, mas propõe ao homem que pretende casar com ela uma questão: por vezes é complicada, outras vezes é simples, exactamente uma pergunta de escola primária. Em todo o caso, o pretendente cometerá inevitavelmente um erro, talvez um erro irrelevante, mas que não escapará nunca à Princesa, e o pretendente será morto. No dia seguinte, apresentar-se-á um novo candidato, e não terá sorte diferente. Na realidade, a Princesa é mulher delicada, afectuosa, que nada de melhor desejaria que casar com um jovem sem nome nem fortuna, e abandonar aquela sua terrível função, já que se trata apenas de uma função q

Fadiga da Ucrânia

Os analistas e comentadores encontraram um termo novo para embrulhar os tópicos relacionados com a guerra: a «Fadiga da Ucrânia». O termo não se refere ao cansaço dos ucranianos após meses de guerra, morte e destruição, mas ao nosso cansaço no chamado «Ocidente». Segundo os analistas e comentadores, «o cansaço já é visível». E é visível onde e em quê? Um artigo de hoje no Público explica: «As interacções nas redes sociais (likes, comentários, partilhas) caíram 22 vezes entre a primeira semana da guerra e a última semana de Maio: de 109 milhões para 4,8 milhões. (...) Durante um período de seis semanas, entre Abril e Maio, houve seis vezes mais interesse em notícias sobre o caso Johnny Depp-Amber Heard do que sobre a guerra na Ucrânia.»

Nuvem

No lançamento de um livro sobre as relações entre a arte contemporânea e o capitalismo financeiro, alguém na assistência pergunta: — Mas afinal onde está o dinheiro? Outro responde: — O dinheiro está na nuvem.

As montras das salsicharias

Na primeira nota, para explicar que se trata de um texto autobiográfico, o tradutor refere que Lichtenberg era corcunda. Isso acontece na página 9. Porém, conforme vou lendo os aforismos , a corcunda do autor vai diminuindo. Quando chegar ao fim, aposto que desaparecerá por completo — como nos contos infantis. ••••••• Podia passar o dia a publicar estas ferroadas de Lichtenberg, a pretexto disto e daquilo, com dedicatórias ou sem motivo nenhum, por puro divertimento, por exemplo: Um selvagem canadiano a quem se mostraram todas as maravilhas de Paris foi, em seguida, interrogado sobre aquilo de que mais gostara. As montras das salsicharias, respondeu ele.

A/C João César Monteiro

Em Brunschwig, vendeu-se em hasta pública, por uma soma muito elevada, um chapéu confecionado com os pêlos mais íntimos de uma jovem. Aforismos, de Lichtenberg. Tradução de João da Fonseca Amaral. Livro B da Editorial Estampa. Lisboa, agosto de 1974.
Este excelente Chanturgue, sem dúvida que Pascal o deve ter bebido, já que era de Clermont. O que lhe critico não é ter-se privado dele — sou a favor da privação, do ascetismo, da Quaresma, sou contra a abolição da Quaresma —, é não lhe ter prestado atenção quando o bebia. Como estava doente, seguia um regime e só comia coisas boas, mas nunca se lembrava do que tinha comido. — Sim, é a sua irmã Gilberte que conta isso. Ele nunca disse: "Isto está mesmo bom!” — Pois bem, eu digo: isto está mesmo bom! E não reconhecer o que está bom é um mal, falando cristãmente. Eu digo que é um mal.

Uma outra beleza

Sangok conta ao realizador que pensou matar-se quando tinha 17 anos e só não o fez porque viu clara e inesperadamente a beleza dos rostos das pessoas na praça junto à estação de Seul. — É uma definição perfeita de epifania. No decorrer do filme há uma interpretação discreta dessa revelação quando a mulher que tira a fotografia reconhece Sangok e fica admirada com a sua beleza intacta. Também ela é tocada directamente no coração por qualquer coisa. A cena entre a miúda e a amiga da mãe que a acolhe na Alemanha em  Apresentação — em termos narrativos, muito diferente de Perante o teu rosto   — é semelhante. Descobrir a beleza dos rostos dos outros, e assim atingir um pouco a essência da vida, é um grande feito. Mas, para que tal aconteça, é necessário engendrar um novo conceito de beleza não subjugado às convenções vigentes e aborrecidas. É preciso pôr em prática uma pequena revolução (também no sentido: marcha circular de um corpo celeste no espaço, em torno de um outro ). Para nossa

Ninguém sabe

O comentador, vestido de cinzento, repete várias vezes num tom grave, sábio e definitivo: «Ninguém sabe quando e como esta guerra vai terminar.» Oh, e alguém sabe como é que os delicados ombros do comentador vestido de cinzento suportam o peso de tão laborioso pensamento? E até quando, até quando, meu deus, conseguirão eles suportar?

60 euros

Ao jantar, um amigo conta-nos que coleccionou durante muitos anos todos os números dos jornais Blitz , Sete , Independente , Público , e das revistas Kapa , Sábado , Visão e Time Out . Tudo rigorosamente organizado por título e ordem cronológica, e arrumado na cave da casa dos pais. Quando o espaço na cave acabou, começou a guardar na despensa do apartamento onde vive. Há pouco tempo, o pai precisou de usar a cave. Ou ele tirava os jornais ou tudo desapareceria numa alegre fogueira. O meu amigo conseguiu vender a colecção do Blitz a outro coleccionador, manteve os números da Kapa e um ou outro jornal que considerava mais importante, e o resto acabou vendido a peso. Mais de uma tonelada de papel: 1300 quilos. 60 euros. E aqui termina a história de milhares de jornais e revistas em papel.