Há um pequeno conto de Giorgio Manganelli que, filmado por Stéphane Brizé, podia ser uma versão alternativa, com ligeiras alterações, do seu mais recente filme, Um Outro Mundo. É o conto oitenta e um, de Centúria:
Na cidade governada pela Princesa Sanguinária, todos os homens, uma vez ou outra, se apaixonam pela Princesa, e se apresentam na corte para pedi-la em casamento. Ela nunca diz que não, mas propõe ao homem que pretende casar com ela uma questão: por vezes é complicada, outras vezes é simples, exactamente uma pergunta de escola primária. Em todo o caso, o pretendente cometerá inevitavelmente um erro, talvez um erro irrelevante, mas que não escapará nunca à Princesa, e o pretendente será morto. No dia seguinte, apresentar-se-á um novo candidato, e não terá sorte diferente. Na realidade, a Princesa é mulher delicada, afectuosa, que nada de melhor desejaria que casar com um jovem sem nome nem fortuna, e abandonar aquela sua terrível função, já que se trata apenas de uma função que lhe foi imposta. Com efeito, a Princesa tem de obedecer a um Rei Sanguinário, que lhe sugere as perguntas, examina as soluções propostas e aponta o inevitável erro, ao mesmo tempo que lhe ordena que proceda à execução do temerário pretendente. Mas o Rei Sanguinário, por suz vez, amaldiçoa a sua tarefa, e nada de melhor desejaria que ler os clássicos, viajar à procura de catedrais antigas e de livros esquecidos pelos homens. Não desejaria matar ninguém, e não é raro chorar juntamente com a sua cara Princesa, mas tem de obedecer ao Imperador Sanguinário. Este convoca todas as semanas o Rei e pergunta-lhe quantos foram os mortos, e de que maneira; e quando o Rei lhe descreve a sorte terrível daqueles jovens incautos, escuta anuindo, como se as coisas corressem exactamente do modo que deseja, e no fim congratula-se com o Rei, que no seu íntimo arranca os cabelos e se amaldiçoa a si próprio e ao Imperador. Na realidade, o Imperador é um homenzarrão que gosta de caça, aprecia os bons e gordos alimentos, o vinho e as cantatas depois do jantar; brinca com cães e gatos, e faz questão em ser generoso para com os pobres; mas também ele tem de obedecer. Todos os meses deixa o castelo e interna-se pelos montes, parando diante de uma caverna na qual não ousa entrar; mas, imóvel no seu limiar, descreve em voz alta quantas pessoas foram mortas, onde e como. Lá de dentro responde uma voz com rosnadelas e mugidos, e poderia também ser a voz de um dragão, ou de um vulcão, ou de um fantasma. Estranhamente, aquela voz aplaca-se numa espécie de murmúrio, que tem em si algo benévolo. Então, o Imperador enrola-se no seu manto e encaminha-se de novo para o castelo, perguntando-se a quem está a obedecer, se demónio ou deus, ou se aquele mesmo a quem obedece não será um demónio que obedece a um deus, ou um deus feito escravo pelo demónio.
(Tradução de António José Pinto Ribeiro.)
Este deus ou demónio do conto de Manganelli, com voz de dragão, vulcão ou fantasma, a que todos obedecem e que nunca ninguém viu, no filme de Brizé corresponde aos chamados «mercados», «accionistas», «investidores», Wall Street.
Na cidade governada pela Princesa Sanguinária, todos os homens, uma vez ou outra, se apaixonam pela Princesa, e se apresentam na corte para pedi-la em casamento. Ela nunca diz que não, mas propõe ao homem que pretende casar com ela uma questão: por vezes é complicada, outras vezes é simples, exactamente uma pergunta de escola primária. Em todo o caso, o pretendente cometerá inevitavelmente um erro, talvez um erro irrelevante, mas que não escapará nunca à Princesa, e o pretendente será morto. No dia seguinte, apresentar-se-á um novo candidato, e não terá sorte diferente. Na realidade, a Princesa é mulher delicada, afectuosa, que nada de melhor desejaria que casar com um jovem sem nome nem fortuna, e abandonar aquela sua terrível função, já que se trata apenas de uma função que lhe foi imposta. Com efeito, a Princesa tem de obedecer a um Rei Sanguinário, que lhe sugere as perguntas, examina as soluções propostas e aponta o inevitável erro, ao mesmo tempo que lhe ordena que proceda à execução do temerário pretendente. Mas o Rei Sanguinário, por suz vez, amaldiçoa a sua tarefa, e nada de melhor desejaria que ler os clássicos, viajar à procura de catedrais antigas e de livros esquecidos pelos homens. Não desejaria matar ninguém, e não é raro chorar juntamente com a sua cara Princesa, mas tem de obedecer ao Imperador Sanguinário. Este convoca todas as semanas o Rei e pergunta-lhe quantos foram os mortos, e de que maneira; e quando o Rei lhe descreve a sorte terrível daqueles jovens incautos, escuta anuindo, como se as coisas corressem exactamente do modo que deseja, e no fim congratula-se com o Rei, que no seu íntimo arranca os cabelos e se amaldiçoa a si próprio e ao Imperador. Na realidade, o Imperador é um homenzarrão que gosta de caça, aprecia os bons e gordos alimentos, o vinho e as cantatas depois do jantar; brinca com cães e gatos, e faz questão em ser generoso para com os pobres; mas também ele tem de obedecer. Todos os meses deixa o castelo e interna-se pelos montes, parando diante de uma caverna na qual não ousa entrar; mas, imóvel no seu limiar, descreve em voz alta quantas pessoas foram mortas, onde e como. Lá de dentro responde uma voz com rosnadelas e mugidos, e poderia também ser a voz de um dragão, ou de um vulcão, ou de um fantasma. Estranhamente, aquela voz aplaca-se numa espécie de murmúrio, que tem em si algo benévolo. Então, o Imperador enrola-se no seu manto e encaminha-se de novo para o castelo, perguntando-se a quem está a obedecer, se demónio ou deus, ou se aquele mesmo a quem obedece não será um demónio que obedece a um deus, ou um deus feito escravo pelo demónio.
(Tradução de António José Pinto Ribeiro.)
Este deus ou demónio do conto de Manganelli, com voz de dragão, vulcão ou fantasma, a que todos obedecem e que nunca ninguém viu, no filme de Brizé corresponde aos chamados «mercados», «accionistas», «investidores», Wall Street.
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