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O mistério

Um manto de silêncio abateu-se sobre os supostos avanços na produção de uma vacina. Há semanas que não há notícias relevantes sobre o assunto. Mil laboratórios numa roda-viva. E, no entanto, o vírus continua sem revelar o seu segredo. O mistério recuperou o seu lugar no mundo. O mistério que nos perturba tão profundamente e que é tão humano como a crença no poder da ciência. É tudo tão velho e tão novo ao mesmo tempo.

Regras de etiquetas

Ultrapassou os influenciadores, a pandemia e a quarentena; ultrapassou até o venerável Ludwig Wittgenstein. Cioran ( ah, cet enfoiré ! ) alastra neste blogue como um vírus.

O medo

Os outros têm medo de nós porque nós temos medo deles. Nós temos medo dos outros porque eles têm medo de nós. As máscaras não quebram o círculo vicioso. Pelo contrário, são a mais pura expressão gráfica deste estranho terror.

Feira do livro

Este ano, a feira do livro tem regras muito precisas. Os leitores devem seguir um percurso previamente estabelecido, avançando sempre pela direita, de forma ordenada, e evitando, tanto quanto possível, permanecer demasiado tempo no mesmo lugar.  Faz lembrar aqueles romances muito bem delineados, com princípio, meio e fim, personagens sólidos como o cimento, um «plot» — como sói dizer-se —, impecável, tudo perfeito, tudo plano, tudo insípido, sem imaginação. Como uma doença que nunca nos abandona.

Máscaras e palavras

Sou meio duro de ouvido. Acontece-me por vezes não perceber à primeira o que me dizem. Por timidez, nem sempre peço para repetirem. Com as máscaras, o problema generalizou-se e eu desisti. Há conversas em que consigo perceber apenas algumas palavras. Mas será que ouço as palavras correctas ou simplesmente imagino-as? Quantos diálogos extravagantes não têm acontecido nestes tempos de pandemia? Quantas histórias paralelas não têm vivido as pessoas duras de ouvido?

Loop

Uns confinam, outros desconfinam. Os que desconfinam agora, confinarão mais tarde. Os que confinam hoje, desconfinarão amanhã. O vírus parece que vai e volta, mas na verdade não vai a lado nenhum. É como se estivéssemos a assistir em loop àquela cena de Ecce Bombo em que Michele Apicella, o personagem de Nanni Moretti, se despede várias vezes dos amigos, mas nunca chega a sair do lugar.

Sombra

Já passaram cinco meses desde que estou em casa. Talvez mais. Perdi a conta ao tempo. A gaivota que nasceu no telhado em frente já tem o tamanho de um pato pequeno. Move-se de um lado para o outro, sobre as telhas, com a mesma destreza com que um tipo sóbrio caminha numa rua de paralelos. Tem um apetite voraz. Os pais desembaraçam-se como podem, atirando-se aos sacos do lixo. De vez em quando, passam à frente do sol e uma sombra rápida desliza pelas paredes de minha casa. É o momento mais «verdadeiro» do meu dia de teletrabalho.

Lado B

A ideia de um «regresso à normalidade» dispersa-se em farrapos diante da mais do que provável «segunda vaga» da pandemia. Rodamos o disco do Lado A para o Lado B, pousamo-lo no prato, a agulha baixa e escutamos: a mesma série de sons incompreensíveis, a mesma música estranhamente dissonante.

Máscara e dioptrias

Óculos embaciados na padaria. Óculos embaciados na frutaria e no supermercado. Óculos muito embaciados nos transportes públicos. Óculos embaciados nos correios, na mercearia e no cinema. Um tempo baço, fosco, obscuro. Mal se vê para fora e pouco se vê para dentro. Também a imaginação anda com as lentes embaciadas.

A febre

Éramos talvez umas seis ou sete pessoas no cinema. De máscara e espalhadas pela sala. Sessão dupla de Buñuel: «Simão do deserto» e «A febre sobe em El Pao». No final, imediatamente antes da sala se iluminar, lemos em fundo negro a última frase dos créditos de «A febre...»: «Les Films Corona.»

Espaço

O confinamento e «Abril» , de Otar Iosseliani, provam várias coisas. A saber: bancos, cadeiras e cadeirões ocupam muito espaço. Os espelhos, as cristaleiras e os aparadores também. Mesas, secretárias e estantes exigem muito, muito espaço. Assim como os frigoríficos e os fogões. Os sofás são das coisas que ocupam mais espaço. Pequenos objectos, como pratos, copos, talheres, e pequenos electrodomésticos, como ventoinhas, aspiradores ou torradeiras, em conjunto, ocupam espaço a mais. O amor, a música e as árvores não ocupam espaço, mas definham em espaços demasiado preenchidos.

Todos no mesmo barco

«Estamos todos no mesmo barco», insistem o colunista de jornal e a vizinha na frutaria. Mas que barco é esse? Um transatlântico, um veleiro, um bote de borracha? E quem viaja nos camarotes de primeira? Quem segue na casa das máquinas e no porão? Quem vai cair à água?

Máquina

Em «Paris qui dort», René Clair imaginou a história de um cientista louco que inventou uma máquina capaz de parar o mundo, congelando-o como num fotograma. Ao longo do filme, o mundo pára, pula e avança várias vezes, segundo as circunstâncias e os caprichos dos personagens. Neste momento, há centenas de laboratórios em todo o mundo, cheios de cientistas loucos à procura de uma máquina de fazer vacinas. Falta, no entanto, o mais importante: um René Clair.

Lições da Finlândia

Pratico o distanciamento social há muito tempo por isso a pandemia pouco alterou as minhas rotinas. A única coisa que mudou é do foro matemático: estou há quarenta dias sem trabalhar, ganho menos de seiscentos euros por mês. Sinto-me uma cobaia num laboratório social para “estudo da introdução do rendimento básico incondicional”. Como se pode comprovar pela imagem em anexo, a  experiência está a correr bem.

Baratas tontas

Nos últimos dias, o governo não se tem poupado a esforços para convencer as pessoas a saírem de casa e a fazerem compras. Apesar disso, as ruas e as lojas continuam quase vazias. Os portugueses estão a resistir ao desconfinamento. «Por causa do medo», dizem os jornais . «O Anjo Exterminador» desceu decididamente sobre nós em todo o seu negro esplendor. Há uns três meses, o filme de Buñuel seria ainda uma obra delirante e subversiva, um exemplo perfeito da regra surrealista de «abrir todas as portas ao irracional». Hoje, o frágil muro que separa o real do surreal caiu definitivamente. O mapa das correntes artísticas está de pernas para o ar. É fácil imaginar os corredores das universidades de artes e letras cheios de baratas tontas, a correrem desatinadas, para a frente e para trás.

Trânsito

Ligo o rádio. Enquanto tomo café e aguardo pelas notícias, o pivô transmite a informação de trânsito. Há mais de dois meses que as estradas estão praticamente vazias, sem filas, sem caos, sem nada. Hoje, pela primeira vez, deu-se um despiste numa estrada de Lisboa. Pareceu-me adivinhar uma ligeiríssima expressão de alívio na voz do jornalista.