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Cor-de-rosa

Alguém decidiu cobrir o edifício da Câmara do Porto com duas telas colossais onde figuram imagens da rainha de Inglaterra . Parecem as páginas centrais de uma gigantesca revista cor-de-rosa, pousada no cimo da Avenida dos Aliados. Papel de revista sem préstimo nenhum, inútil para acender fogueiras ou embrulhar peixe.

Pessoas desconhecidas em álbuns de família

Manhã de sábado, esplanada da Leitaria. Um guia turístico, vindo dos Leões, aproxima-se, erguendo no ar um guarda-chuva fechado, como um pára-raios a apontar para o céu. Atrás dele, uma palmípede fila de 15 ou 20 turistas. O guia pára junto à esplanada, espera pacientemente que os turistas formem à sua frente um semicírculo perfeito e começa a apresentar a Leitaria: «Fundada em 1920», «há várias gerações que os portuenses amam e frequentam a Leitaria», «a especialidade são os éclairs», «todos os dias produzem mais de 35.000 bolos», «o sucesso levou a casa a expandir-se para outros locais, incluindo o Corte Inglês, em Gaia»… Os turistas tiram fotos à fachada de plástico, às mesas compradas no IKEA, ao preçário com imagens dos bolos, às pessoas que estão sentadas na esplanada. Olho à minha volta. Devo ser o único portuense naquelas fotografias.

Ficção Científica

Ontem, ao fim da tarde, uma nuvem cinzenta desceu fria e lentamente sobre o Porto como um avião colossal. Demos por nós atónitos, à janela, a olhar para o céu. Depois de várias semanas de sol e temperaturas tropicais, a nuvem assemelhou-se a um estranho episódio de ficção científica.

Pesadelo perfumado

Diz-se que viajamos para ver o mundo. Que mundo vêem os turistas que viajam até ao Porto? Que pesadelo perfumado filmaria Kidlat Tahimik na nossa cidade?

O mar

Há uns anos, não era Abril, mas Agosto. Era o mais cruel dos meses. A cidade parecia uma longa e interminável tarde de domingo. As ruas desertas, os cafés fechados. Tudo fechado, excepto as farmácias e os supermercados. Não havia esplanadas. Não havia cinema, muito menos teatro. Os dias arrastavam-se sob o calor. Nas praias, a nortada varria toalhas, guarda-sóis, sacos de plástico — isso não mudou. Agora, a cidade está a rebentar de turistas. Ao fim da tarde, depois do trabalho, descemos até à Baixa no meio da corrente. Na esplanada do Candelabro, observamos distraídos o movimento das vagas. Maré alta e maré baixa, maré alta e maré baixa. Enquanto as gaivotas lançam os seus anzóis de cima dos telhados.

Jacarandás

Foi um Inverno seco. Talvez por isso os jacarandás do Porto estejam tão tristonhos. São muito poucos e este ano quase passam despercebidos. Um jacarandá que nesta altura não se assemelhe a uma estrela rock, exuberante, desmesurada, megalómana, num palco iluminado por mil focos de luz roxa, é uma árvore tão macambúzia como um eucalipto.

Na parede da Capela do Senhor do Olho Vivo, na Rua Antero de Quental, substituíram a centenária caixa de esmolas em ferro por uma coisa de plástico branco. A fé do pároco na solidez do plástico e, sobretudo, na integridade do próximo é muito impressionante. Talvez a tão apregoada crise de fé da Igreja tenha sido manifestamente exagerada.

A linha

Estação da Trindade, fim de tarde. A linha do metro divide os passageiros por classe. No Cais 1, os passageiros que regressam aos condomínios e hotéis da Boavista, Matosinhos, Maia e Vila do Conde: funcionários públicos, professores, estudantes altivos de economia, casais de «turistas seniores», arquitectos vestidos à moda, jovens empreendedores ao telefone. No Cais 2, os passageiros que vivem em Campanhã, Rio Tinto, Gondomar ou Fânzeres: trabalhadores do comércio e da restauração, empregadas domésticas, operários, crianças sozinhas vindas da escola, pensionistas e jogadores de cartas dos bancos de jardim.

Deus está em casa e pode ouvir

Uma mulher e um miúdo pequeno estão sentados nas escadas da Igreja da Lapa, à espera do autocarro. O miúdo brinca com uma máscara cirúrgica. Nisto, um golpe de vento arranca-lhe a máscara da mão e atira-a para longe. O miúdo grita «ai, caralho, a minha máscara» e corre atrás dela. A mãe repreende-o num cerrado sotaque tripeiro: «Não digas asneiras à frente da igreja, grande morcão!»

Uma experiência

Montar um filme a partir das longas sequências de Jeanne Moreau a caminhar pelas ruas de Paris ( Ascenseur Pour l'Echafaud , de Louis Malle) e Milão ( La Notte , de Michelangelo Antonioni), e dar-lhe este título: O Porto segundo Jeanne Moreau .

Pão de mistura

No café moderno da Baixa, atafulhado de plástico e pechisbeque, a empregada tripeira (o acento é cerradíssimo) explica a um casal de turistas franceses vestidos à moda, que aquele pão é de mistura. «— Pão de mistura. Aqui chamamos “parolo”. — Párrólô? —Isso, parolo!»

Compreendes?

Estou a contar carneiros na montra da Académica e há dois tipos a beber cerveja à porta da Mirita. Apanho a conversa a meio. Um tipo conta ao outro que foi falar com um terceiro, a propósito de qualquer assunto cujo teor não chego a perceber. «— E o que lhe disseste? — Disse assim: “Olá, boa tarde, vai para a puta que te pariu.” —... — Isto para ser educado, compreendes? — Compreendo.»

Seis da tarde

Às seis da tarde é quase noite cerrada. O empregado do Vitória baixa discretamente a luz dos candeeiros. Há três gatos pingados a ler na sala que dá para a rua. A esta luz parda de velório, é impossível decifrar as letras no papel. Fecho o livro, pago o café e saio. É a vez da grande sombra pôr os óculos e ler-me a mim: «Era uma vez um fantasma com calças a caminho de casa.»