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A água corre funda o homem não lhe chega Talvez a sensação mais forte e duradoura seja a estranheza: não se entra em "Cavalo Dinheiro" com passos conhecidos, neste filme tudo é tensão e distância, tudo é o contrário da revelação — uma impressão que cresce na sombra, excita e assusta, um arrepio. A água corre funda. Talvez isso venha da natureza dual de "Cavalo Dinheiro", aqui já não há um autor no sentido reverencial do termo. O filme é tanto de Pedro Costa como de Ventura, assistimos ao culminar da aventura arqueológica que começou em "A Casa de Lava": a análise dos vestígios materiais, mas também coisas tão abstractas como as manchas de humidade numa parede. Pedro Costa executa um trabalho intenso e meticuloso (verdadeiro ofício): a colocação exacta e gentil da câmara; o tempo dilatado e justo; as paredes portas e janelas assinalando um espaço real e perturbado (como se o real tivesse pernas e braços); um som que oprime (nos quartos) e liberta (o

Fazer como é possível

Trata-se de um compositor de polcas. Pestana, o mais famoso do momento, reconhecido e louvado por onde vá, procurado pelos editores, abastado materialmente. No entanto, Pestana odeia as suas polcas que toda a gente canta e executa, porque o seu desejo é compor uma peça erudita de alta qualidade, uma sonata, uma missa, como as que admira em Beethoven e Mozart. À noite, postado no piano, leva horas solicitando a inspiração que resiste. Depois de muitos dias, começa a sentir algo que prenuncia a visita da deusa e a sua emoção aumenta, sente quase as notas desejadas brotando dos dedos, atira-se ao teclado e… compõe mais uma polca! Polcas e sempre polcas, cada vez mais brilhantes e populares é o que faz até morrer. A alternativa é negada também a ele; só lhe resta fazer como é possível, não como lhe agradaria. Neste conto terrível [de Machado de Assis] sob a leveza aparente do humor, a impotência espiritual do homem clama como do fundo de um ergástulo. Antonio Candido, O direito à literat
Edição Língua Morta.
Slawomir Mrozek. Sábado, 31 de Janeiro, nas Leituras do Gato Vadio, a partir das 17h00.

Quero ser cavalo

Como eu gostava de ser cavalo... Bastava que, ao olhar para o espelho, pudesse ver, em vez de pés e mãos, cascos e uma cauda no traseiro e uma cabeça de cavalo autêntica, para ir direito ao departamento de habitação... «Quero um andar grande e moderno», diria. «Tem de preencher uma requisição e esperar a sua vez.» «Ah, ah, ah», havia de rir. «O cavalheiro não vê que não sou nenhum vulgar homem da rua? Sou diferente, sou especial.» Logo a seguir, dar-me-iam um grande e espaçoso andar com casa de banho. Faria espectáculos numa revista e ninguém se atreveria a dizer que não tinha talento - mesmo se o texto não prestasse. Pelo contrário, haviam de elogiar-me. «Não é uma maravilha, para um cavalo?», diriam. «Que cabeça!», comentariam outros. Depois viria todo o gozo dos ditados e provérbios: «Senso de cavalo», «A cavalo dado não se olha o dente», «Um reino para um cavalo», «Um cavalo cinzento»... Havia de despertar o interesse das mulheres. «Você é tão diferente», diriam. E, quan

Sábado, 31 de Janeiro, a partir das 17h00, no Gato Vadio

A imagem, magnífica como sempre, é do Luís Nobre, dos Lina&Nando .

Uma mariposa pousada no tecto

Era o último dia da vida de Emiliano Leprini. Todos o sabiam. Emiliano Leprini sabia-o também. Não devemos ser demasiado sensíveis e escrupulosos nos assuntos relacionados com a morte. A existência é assim mesmo: o fim é certo e há um dia para morrermos. Como disse, o último dia de Emiliano Leprini era exactamente aquele. Descalçou as pantufas, vestiu o seu melhor pijama de lã escocesa e deitou-se tranquilamente à espera. A tarde apagava-se, o sol mergulhava, ainda quente, no mar. A mulher era uma estátua de silêncio à sua cabeceira. Nesse momento, o moribundo observou uma mariposa que estava pousada no tecto. E não só a observou, como a estudou também (voltaremos a este assunto mais tarde, a menos que nunca mais voltemos). Um lenço subiu à fronte da mulher e procurou pudicamente absorver uma ou duas lágrimas tristes. Emiliano tinha sido de muito boa companhia durante toda a vida e um espírito muito pronto, jovial e afável. Dele ninguém podia dizer que fora uma pessoa de trato difíci

Antes das larvas terem morrido de tédio

O tio vivia numa ruela estreita junto a um convento. Ocupava um quarto amplo num rés-do-chão. ("Prefiro o rés-do-chão, meu caro senhor", costumava ele dizer, "a todas essas ideias modernistas de andares elevados e quejandos"). O seu quarto estava completamente cheio de livros velhos, grossos volumes ocupando estantes meio carcomidas pelo caruncho antes das larvas terem morrido de tédio. Slawomir Mrozek, O Elefante . Tradução de Yolanda Artiaga.

As doutrinas de Fourier

E examinaram as doutrinas de Fourier. Todas as desgraças vêm da coacção. Se a Atracção for livre a Harmonia há-de estabelecer-se. A nossa alma contém doze paixões principais, cinco egoístas, quatro anímicas, três distributivas. Tendem elas, as primeiras, para o indivíduo, as seguintes para os grupos, as últimas para os grupos de grupos, ou séries, cujo conjunto é a Falange, sociedade de mil e oitocentas pessoas, que habitam num palácio. Há carros que levam os trabalhadores para o campo todas as manhãs e os trazem à tarde. Usam estandartes, dão festas, comem bolos. Toda a mulher, se assim o quiser, possui três homens, o marido, o amante e o genitor. Para os solteiros, é instituído o Bailadeirismo. - Isto calha-me! - disse Bouvard; e perdeu-se nos sonhos do mundo da harmonia. Graças à restauração das condições climáticas a terra tornar-se-á mais bela, graças ao cruzamento das raças a vida humana será mais longa. Poderão dirigir-se as nuvens como agora se faz com os raios, choverá de

Próximo sábado, 10 de Janeiro

No próximo sábado, 10 de Janeiro, vamos estar na Livraria-Cafetaria Snob , em Guimarães, a partir das 18h00, e na Casa Azul, em Barcelos, a partir das 22h30, para apresentar "Notícias em três linhas", de Félix Fénéon, o primeiro volume da Colecção Avesso . Com a participação de Carolina Lapa (Guimarães) e Eduardo Calheiros Figueiredo (Barcelos). A Snob fica na Rua D. João I, 210A, R/C, em Guimarães (facebook) . A Casa Azul fica na Rua Barjona de Freitas, em Barcelos (facebook da associação Zoom) .

Vendedor de aquecedores

Thomas Bernhard, diz, não tinha particular interesse ou admiração pela academia e por isso deu-lhe um certo gozo quando emprestou livros para uma exposição e participou num ciclo dedicado ao autor alemão, no CCB, e, no meio de um dos debates, teve a oportunidade de frisar que ele, que tanto tinha lido Bernhard, não era um investigador, mas apenas um leitor. “Estavam a tratar-me por ‘professor isto, professor aquilo’”, conta. “E eu disse: ‘Desculpe, há aí uma confusão: eu não sou professor de nada, sou vendedor de aquecedores.” Aqui.

O título desta história é... Oh, diabo! Esqueci-me do título desta história

Era um dia triste, fosco e frio. Elwood Veeblefetzer tinha os pés gelados. Ora, cada pessoa tem as suas manias e a de Elwood era a de não gostar de sentir os pés gelados. Por isso, passara a manhã a matar moscas na tentativa de os aquecer. Também tinha feito isto e aquilo, mas o resultado fora o mesmo: pés gelados. A culpa era obviamente dos sapatos. Saiu de casa para comprar um par novo. Na sapataria, o empregado fez-lhe notar que os sapatos vermelhos tinham esgotado, mas que em contrapartida tinha exactamente aquilo de que ele precisava: um par de sapatos pretos. Elwood ainda torceu o nariz para um lado e para o outro, mas pôs a caixa debaixo do braço, pagou e saiu a correr. Em casa, logo que abriu a caixa, os sapatos saltaram para o chão e desataram a fugir em todas as direcções. Sem vontade de brincar, Elwood dispôs-se a apanhá-los usando de todos os estratagemas. Primeiro, acenando-lhes com falinhas mansas. Depois, tentando esmurrá-los com o punho fechado. Mas de nada lhe servir