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Mensagens

Conselhos práticos para todas as circunstâncias, incluindo a confecção de uma sopa de tomate

Que cada qual se aconselhe consigo próprio e ai daquele que não o possa fazer. Se se sair bem, alegre-se com a sua sabedoria e a sua felicidade; se se sair mal aqui estou para lhe dar uma mão. Quem deseje ver-se livre dum mal, sabe sempre o que quer; quem deseje coisa melhor do que tem é rematadamente cego... Sim, sim! riam-se vocês... mas isso é tal e qual o jogo da cabra-cega, que quer agarrar o que deseja; mas quê? Vocês façam o que quiserem; que será sempre o mesmo. Andem com os amigos ou afastem-nos para o lado; é tudo a mesma coisa. Já vi malograr-se o mais judicioso e triunfar o mais absurdo. Não quebrem a cabeça e se deste ou daquele modo a coisa lhes sair mal não desanimem também. Goethe, As afinidades electivas . Tradução de Beatriz de Mascarenhas

Basta o primeiro parágrafo

Nos meados do século dezasseis, vivia nas margens do Havel um negociante de cavalos chamado Michael Kohlhaas, filho de um mestre-escola, um dos homens mais correctos e ao mesmo tempo mais terríveis do seu tempo. Este homem pouco vulgar teria podido ser considerado, até aos trinta anos, um modelo de bom cidadão. Possuía uma quinta numa aldeia que ainda hoje usa o seu nome e ali vivia tranquilamente ganhando a vida com a sua profissão; crescera no temor de Deus e educava os filhos que a mulher lhe dava no respeito pela lealdade e pelo trabalho; nenhum dos seus vizinhos tinha que dizer da sua generosidade e honestidade. Resumindo: o mundo decerto viria a abençoar-lhe a memória se não tivesse acontecido ele exagerar numa das suas virtudes: o sentimento inato da justiça transformou-o num salteador e assassino. Heinrich von Kleist, Michael Kohlhaas, o rebelde . Tradução de Egito Gonçalves.

Como é que acontece?

Ora, numa noite de Fevereiro de 1974, tive de sair de casa para comprar um remédio para o meu filho, que estava doente. Enquanto conduzia em direcção à farmácia, surgiram-me de repente, e sem que eu estivesse a pensar sequer nesse ou em qualquer outro dos sonetos [de Shakespeare], o primeiro verso de uma versão em português, e em alexandrino, do soneto 130 ("My mistress' eyes are nothing like the sun"). O resto foi bem rápido. Tão rápido que, nesse mesmo mês de Fevereiro de 1974, acabei por traduzir 35 sonetos... Normalmente pegava na colectânea e ia lendo e relendo, até que se me desencadeava em português a forma incial dos textos de que depois, com alguma minúcia e bastante liberdade, procurei encontrar o equivalente na nossa língua: ou que, para usar uma bela expressão de Carlos de Oliveira, procurei reescrever em português . Bom, e a partir daí... Vasco Graça Moura.

Consumir-se uma pessoa a vida inteira

O que estou é velho. Cinquenta anos pelo S. Pedro. Cinquenta anos perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me, a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada. Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para que! Comer e dormir como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo? Graciliano Ramos, S. Bernardo .

O homem mais feliz do mundo

Imagine-se isto: um homem chamado Joseph Haacke perde a visão de um dia para o outro. O caso apanha-o de surpresa porque nunca sofreu de problemas oftalmológicos. Os médicos informam-no que a cegueira é irreversível e que se há coisas sem explicação esta é uma delas. Calcule-se a sua angústia. Em pouco tempo, mergulha na mais profunda tristeza e solidão. Para minorar a dor, ordena ao filho mais novo que lhe leia um livro todos os dias. Não é coisa que satisfaça o rapaz, pois detesta ler. No entanto, para não contrariar o pai, sujeita-se ao seu capricho. Pelo menos ao pobre homem assim parece. Na verdade, o rapaz não lê coisa nenhuma, mas inventa histórias, pronunciando cuidadosamente cada palavra, sugerindo a posição de cada ponto final e de cada vírgula, como se estivesse a recitar livro atrás de livro. Ao princípio, arrisca a composição de pequenos contos. Depois, lança-se em extensos romances, cada vez mais complexos. O rapaz desempenha a sua missão com todo o tacto, inventando ta

Namorada

Depois que vê a garota ele corre se olhar no espelho: não pode negar, meio feio? quase feio? Numa palavra, feio. Dia seguinte desiste do bigode ralo. Quem sabe costeleta ou cavanhaque? A menina o enfeitiça. Possuído, sim. Febrícula, sonho delirante, falta de ar, sede mas não de água.  Ela surge enrolada no garfo do suculento espaguete à bolonhesa. De sainha xadrez na primeira tarde, ó deliciosa bolacha Maria com geleia de uva. Formigas de fogo mordem sob a camisa quando ela vem na rua, brincando com o arco-íris na ponta dos dedos.  Consegue afinal apertar-lhe a mãozinha na luva de crochê, ri (descuidoso de ser feio) dentro de seus olhos glaucos. Discutem o narizinho, quem sabe arrebitado, segundo ela. E para ele, nada mais bonito que tal narizinho.  Meio do sono acorda, olho arregalado no escuro. A sua imagem o percorre, impetuoso vento por uma casa de portas abertas. Ninguém por perto, fala sozinho. A mãe o acha mais magro. Quem dera ser o terceiro motociclista do Globo da Mort

Do you want my biography? Here it is.

I was born in Taganrog in 1860. I finished the course at Taganrog high school in 1879. In 1884 I took my degree in medicine at the University of Moscow. In 1888 I gained the Pushkin prize. In 1890 I made a journey to Sahalin across Siberia and back by sea. In 1891 I made a tour in Europe, where I drank excellent wine and ate oysters. In 1892 I took part in an orgy in the company of V. A. Tihonov at a name-day party. I began writing in 1879. The published collections of my works are: “Motley Tales,” “In the Twilight,” “Stories,” “Surly People,” and a novel, “The Duel.” I have sinned in the dramatic line too, though with moderation. I have been translated into all the languages with the exception of the foreign ones, though I have indeed long ago been translated by the Germans. The Czechs and the Serbs approve of me also, and the French are not indifferent. The mysteries of love I fathomed at the age of thirteen. With my colleagues, doctors, and literary men alike, I am on the best of te

Próximo sábado, 28 de Fevereiro, pelas 17h00, no Gato Vadio

Imagem de Luís Nobre, dos Lina&Nando .

Novo volume da Colecção Avesso, em breve

Está a chegar um novo volume da Colecção Avesso, "Quartos Alugados", o mais recente livro de contos de Alexandre Andrade, com prefácio de Cristina Fernandes. É o volume n.º 5 da Colecção. Nas livrarias em breve. Mais informações no blogue da Colecção Avesso, disponível aqui.

Uma história sobre cavalos

Um homem passeia-se de eléctrico por toda a cidade. Há vários dias que não faz outra coisa. Na verdade, é a única coisa que sabe fazer. O autor teve que se ausentar por certas razões, talvez para comprar ervilhas*, e esqueceu-se dele. Talvez se tenha esquecido dele para sempre. No entanto, tranquilo e alegre, o homem continua a desempenhar o seu papel com a mais canina das fidelidades. Sai de um eléctrico e entra no seguinte. Termina uma viagem e começa outra. Avança um pouco pelo corredor, escolhe um lugar à janela e senta-se calmamente a gozar a vista. As ruas a desenrolarem-se enquanto ele segue refastelado no seu confortável banco de eléctrico, com um prazer doce, meigo e lento, recostado e com os braços cruzados sobre o peito, de uma maneira muito edificante. Como um imperador, nobre e magnânimo, sentado no seu trono, sorrindo de modo quase imperceptível, como se uma mosca lhe tivesse feito cócegas. Entretanto, o sol nasce todas as manhãs, percorre o céu e põe-se todas as tardes
A água corre funda o homem não lhe chega Talvez a sensação mais forte e duradoura seja a estranheza: não se entra em "Cavalo Dinheiro" com passos conhecidos, neste filme tudo é tensão e distância, tudo é o contrário da revelação — uma impressão que cresce na sombra, excita e assusta, um arrepio. A água corre funda. Talvez isso venha da natureza dual de "Cavalo Dinheiro", aqui já não há um autor no sentido reverencial do termo. O filme é tanto de Pedro Costa como de Ventura, assistimos ao culminar da aventura arqueológica que começou em "A Casa de Lava": a análise dos vestígios materiais, mas também coisas tão abstractas como as manchas de humidade numa parede. Pedro Costa executa um trabalho intenso e meticuloso (verdadeiro ofício): a colocação exacta e gentil da câmara; o tempo dilatado e justo; as paredes portas e janelas assinalando um espaço real e perturbado (como se o real tivesse pernas e braços); um som que oprime (nos quartos) e liberta (o

Fazer como é possível

Trata-se de um compositor de polcas. Pestana, o mais famoso do momento, reconhecido e louvado por onde vá, procurado pelos editores, abastado materialmente. No entanto, Pestana odeia as suas polcas que toda a gente canta e executa, porque o seu desejo é compor uma peça erudita de alta qualidade, uma sonata, uma missa, como as que admira em Beethoven e Mozart. À noite, postado no piano, leva horas solicitando a inspiração que resiste. Depois de muitos dias, começa a sentir algo que prenuncia a visita da deusa e a sua emoção aumenta, sente quase as notas desejadas brotando dos dedos, atira-se ao teclado e… compõe mais uma polca! Polcas e sempre polcas, cada vez mais brilhantes e populares é o que faz até morrer. A alternativa é negada também a ele; só lhe resta fazer como é possível, não como lhe agradaria. Neste conto terrível [de Machado de Assis] sob a leveza aparente do humor, a impotência espiritual do homem clama como do fundo de um ergástulo. Antonio Candido, O direito à literat
Edição Língua Morta.
Slawomir Mrozek. Sábado, 31 de Janeiro, nas Leituras do Gato Vadio, a partir das 17h00.