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Uma história sobre cavalos

Um homem passeia-se de eléctrico por toda a cidade. Há vários dias que não faz outra coisa. Na verdade, é a única coisa que sabe fazer. O autor teve que se ausentar por certas razões, talvez para comprar ervilhas*, e esqueceu-se dele. Talvez se tenha esquecido dele para sempre. No entanto, tranquilo e alegre, o homem continua a desempenhar o seu papel com a mais canina das fidelidades.
Sai de um eléctrico e entra no seguinte. Termina uma viagem e começa outra. Avança um pouco pelo corredor, escolhe um lugar à janela e senta-se calmamente a gozar a vista. As ruas a desenrolarem-se enquanto ele segue refastelado no seu confortável banco de eléctrico, com um prazer doce, meigo e lento, recostado e com os braços cruzados sobre o peito, de uma maneira muito edificante. Como um imperador, nobre e magnânimo, sentado no seu trono, sorrindo de modo quase imperceptível, como se uma mosca lhe tivesse feito cócegas.
Entretanto, o sol nasce todas as manhãs, percorre o céu e põe-se todas as tardes, como é de sua obrigação. Uma tal massa de gente a entrar e a sair, uma tal multidão, bandos de pessoas a correr, toda uma humanidade afadigada. E o homem continua, dia após dia, um eléctrico a seguir ao outro, só e entregue a si mesmo, sempre com aquele olhar de espanto, como se visse pela primeira vez ruas e locais de uma cidade sempre nova.
Não faltará quem aponte o dedo ao autor por este lamentável esquecimento. Eu não. Casos semelhantes acontecem todos os dias. E, por acaso, até tem graça. Há muito que eu procurava, de nariz no ar, um personagem que se fizesse passear de eléctrico por toda a cidade, para uma história muito breve e singela sobre cavalos.
Pois bem, uma vez que o autor se esqueceu dele e fui o primeiro a encontrá-lo, o personagem agora é meu.

* Escrevo ervilhas para simplificar. É quase certo que o autor se ausentou para comprar bolachas e doce de ruibarbo.

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