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Mensagens

Um carvalho e duas tílias

Era uma vez e várias vezes um homem que mudava de cor segundo as condições meteorológicas. A pele exibia um inconfundível azul-celeste em dias de sol, era turquesa quando fazia muito calor, damasco com nuvens escuras, vermelho violeta com chuva, ocre durante uma tempestade, ametista quando não fazia sol nem chuva, cinza ardósia com vento forte, lilás com vento fraco, jade quando soprava apenas uma brisa suave, púrpura com tempo de nevoeiro, carmesim em alturas de trovoada, índigo com granizo, terracota em manhãs de geada, e por aí adiante. O homem consultou médicos, clínicos, especialistas, terapeutas, curandeiros, mezinheiros, feiticeiros e charlatães. Tudo em vão. Experimentou infindáveis cremes, óleos, loções, cosméticos, pílulas, ampolas, pastilhas e comprimidos. Tomou banhos quentes e frios, de água doce e salgada, ao romper da aurora, ao meio-dia e ao crepúsculo, com pétalas de flores raras do Tibete, corais do mar vermelho, algas do rio amazonas. E depois destas e de muitas out

Constipação

John Dunstable foi o príncipe, a glória e a luz da música. O primeiro a libertá-la das algemas do canto gregoriano. No decurso dos séculos, a música tinha-se petrificado pouco a pouco. As tonalidades religiosas já não podiam dar muito mais. As canções mundanas despertavam muito mais interesse do que as velhas melodias. Dunstable, porém, rompeu com as tonalidades religiosas. Para ele só se impunham o modo maior e menor (dur e moll), que tanto agradavam ao povo. Prescindiu da vacuidade das quartas e quintas e optou pelos acordes do trítono. Fez da música uma arte formosa, livre e mundana. Restituiu-lhe toda a sua primitiva vivacidade. Por fim, apanhou uma terrível e incomodativa constipação, e tudo o que construíra até aí se desmoronou como um castelo de cartas.

Risadinhas maldosas

Dizia-se que quem olhasse directamente para uma Górgona transformava-se em pedra. Ora, Petch Massudi, que era muito distraído, pousou os olhos sem querer em Esteno*, a mais terrível das Górgonas. Transformou-se imediatamente em árvore. Mãos, braços, pernas, cabeça, tudo transformado em madeira, casca e folhas. Um pardal que assistira a tudo, deu três voltas no ar, aproximou-se com um ar estudadamente amigável e soltou uma bosta inaugural sobre um dos raminhos mais elegantes de Petch Massudi. Depois, com a língua de fora, voou para longe, gingando, entre risadinhas maldosas. * Na realidade, os seus olhos pousaram em Euríale, que andava por ali a colher cogumelos. Mas não vale a pena insistir nesse ponto.

Coincidência estatística

Um recente estudo do Ateliê Parisense de Urbanismo registrou o fechamento de 83 livrarias parisenses entre 2011 e 2014, uma queda de 10% do total. Por outro lado, em uma irônica coincidência estatística, a mesma pesquisa apontou que o maior crescimento no comércio se verificou na venda de óculos: o número de óticas aumentou em 18% no período, com a abertura de mais 138 lojas na capital. Aqui.
William Archer paying a humble visit to Henrik Ibsen. Max Beerbohm, 1904.

Além disso

«Onde é que roubas os teus livros, principalmente?» «Principalmente em minimercados», explicou Carl. «Agradam-me porque, na sua maior parte, são lojas compridas e estreitas, e os empregados têm tendência a ficar junto dos balcões de venda de medicamentos, lá ao fundo, enquanto os livros costumam estar naqueles pequenos expositores giratórios, perto da entrada. Normalmente é facílimo enfiar uns poucos à socapa no bolso do sobretudo, no caso de uma pessoa trazer um sobretudo vestido.» «Mas...» «Sim», prosseguiu Carl, «sei bem o que estás a pensar. Se roubo livros, também sou capaz de roubar outras coisas. Mas roubar livros é metafisicamente diferente de roubar dinheiro. Villon diz qualquer coisa muito boa acerca do assunto, creio.» «Referes-te àquele filme, Se Eu Fora Rei ?» «Além disso», acrescentou Carl, «vais dizer-me que nunca roubaste nada? Em nenhum momento da tua vida?» «A minha vida...», retorquiu Edward. «Porque é que me recordas isso?» Donald Barthelme, 60 histórias .

Uma situação rara sob todos os aspectos

A primeira vez que aconteceu foi na noite da estreia. O actor Sascha Ziegelböck ficou tão perturbado com o caso que não dormiu até de manhã. Na noite seguinte, tudo se repetiu, exactamente como na anterior: subiu ao palco, fez alguns gestos ensaiados e começou a dizer o texto, na sua lúgubre, gutural e monótona voz de bode. Um mar de ais e gritinhos varreu então a sala em ondas sucessivas. Uma após outra, as palavras do actor abriam feridas nos corpos dos espectadores. Ninguém escapou ileso. Depois, aplausos. Aplausos e mais aplausos. Os mais insistentes e vigorosos que ouvira em toda a carreira*. Nessa noite, houve quem saísse do teatro meio morto, mas muito satisfeito. Nos dias que se seguiram, os espectáculos esgotaram. A mesma coisa: Sascha começava a dizer o texto e, acto contínuo, as palavras abatiam-se sobre os corpos com uma fúria descontrolada, abrindo golpes, arrancando carne, partindo ossos e, claro está, provocando desmaios, muitos desmaios. Lamentavelmente, não sou capaz

A pedra

Uma manhã, percorrendo como habitualmente o caminho para o trabalho, Ludwig tropeçou numa pedra e caiu. Na manhã seguinte, tropeçou e caiu outra vez. No dia a seguir, a mesma coisa. Tropeçava sempre na mesma pedra. Ao quarto dia, e estando prevenido, decidiu atinadamente corrigir o percurso e passar ao lado. No entanto, a pedra tinha desaparecido do seu lugar. Ludwig franziu as sobrancelhas. Depois, encolheu os ombros, suspirou e prosseguiu caminho. Mais à frente, a pedra acertou-lhe em cheio na cabeça.

Um enorme urso pardo

Paavo Vitsut entrou na repartição como um enorme urso pardo. Sentou-se, como de costume, atrás da secretária e começou de imediato a desempenhar as suas tarefas habituais. Os funcionários do jardim zoológico chegaram pouco depois. Pareciam estar sem paciência para brincadeiras.

Poesia. Eu também a abomino.

Só não gostam de poesia os poetas que sabem fazê-la, como Marianne Moore. O poema a que me refiro e do qual dou uma “intradução” tem duas versões, das quais ela preferiu a mais breve, remetendo a versão estendida para as notas. Na minha “intradução”: “Poesia. Eu também a abomino. Lendo-a todavia com total desprezo a gente descobre afinal um lugar para o genuíno.” Minha relação com a poesia é muito intensa e contraditória, como imagino que seja a de Marianne, que pratica uma antipoesia, extraindo poesia dos contextos menos poetizáveis. Não compartilho do júbilo recreativo com que tantos colegas meus gostam de exibir seus poemas. Creio com Bernardo Soares que “não há obra de artista que não pudesse ter sido mais perfeita. Lido verso por verso, o maior poema poucos versos tem que não pudessem ser melhores, poucos episódios que não pudessem ser mais perfeitos” etc. Prefiro a poesia dos que vejo menos sujeitos à imperfeição. Leio-os, tento aprender com eles, trituro-os, traduzo-os, “intradu
Rua das Oliveiras, Porto.

Manual de instruções

Pero hay otra manera: considerar un libro como una máquina asignificante cuyo único problema es si funciona y cómo funciona, ¿cómo funciona para ti? Si no funciona, si no tiene ningún efecto, prueba a escoger otro libro. Esta otra lectura lo es en intensidad: algo pasa o no pasa. No hay nada que explicar, nada que interpretar, nada que comprender. Es una especie de conexión eléctrica. Gilles Deleuze.

Dês, efes, agás e jotas

- Uma vez disse-me que o único livro que tinha para ler na prisão era uma metade de um dicionário em inglês. A outra metade tinha sido usada para limpar o rabo. Bom, com um "deleitoso" deve ter lido até aos "dês". - Sim. Mas também há alguns "efes". Uma vez empregou uma palavra de que não me lembro, que significa "equilibrista". - Havia "agás"? - Acho que havia um. - Suponho que essa metade do dicionário não chegava aos "jotas". Graham Greene, O capitão e o inimigo . Tradução de Carlota Pracana.

Thomas

Era um homenzinho cinzento. Herdara o tom directamente do pai. A mãe, pelo contrário, fora sempre de um admirável e resplandecente azul. Mas isso de pouco valeu a Thomas. A natureza tinha seguido o seu caminho. E o resultado foi que nunca o mundo conheceu um homenzinho mais cinzento. Os velhos escavavam na memória sem encontrarem ninguém parecido. Mudo como uma coluna. Impassível como uma igreja vazia. Um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico, pequeno, apagado e sem qualquer atractivo. Nunca a sorte o surpreendeu, nunca o destino lhe preparou uma emboscada. Deixava-se ficar sentado nos cafés durante horas a observar as pessoas. Oh, todas elas tão brilhantes! Qualquer uma delas infinitamente mais brilhante do que ele. Depois, regressava a casa, estendia-se na cama, fechava os olhos e, muito simplesmente, adormecia. Nos seus sonhos, o tom continuava cinzento. Por vezes, sonhava que era capaz de assoar furiosamente o nariz e que com isso iluminava a noite. Mas de manhã tudo