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Thomas

Era um homenzinho cinzento. Herdara o tom directamente do pai. A mãe, pelo contrário, fora sempre de um admirável e resplandecente azul. Mas isso de pouco valeu a Thomas. A natureza tinha seguido o seu caminho. E o resultado foi que nunca o mundo conheceu um homenzinho mais cinzento.
Os velhos escavavam na memória sem encontrarem ninguém parecido. Mudo como uma coluna. Impassível como uma igreja vazia. Um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico, pequeno, apagado e sem qualquer atractivo. Nunca a sorte o surpreendeu, nunca o destino lhe preparou uma emboscada.
Deixava-se ficar sentado nos cafés durante horas a observar as pessoas. Oh, todas elas tão brilhantes! Qualquer uma delas infinitamente mais brilhante do que ele. Depois, regressava a casa, estendia-se na cama, fechava os olhos e, muito simplesmente, adormecia. Nos seus sonhos, o tom continuava cinzento. Por vezes, sonhava que era capaz de assoar furiosamente o nariz e que com isso iluminava a noite. Mas de manhã tudo permanecia igual.
E os dias, os meses, os anos sucediam-se de acordo com aquilo que é costume designar-se por “a marcha do mundo”. E o cinzentismo de Thomas foi dando lugar a uma tonalidade cada vez mais sombria. Tornou-se praticamente invisível na penumbra. Confundia-se com a obscuridade. Apenas se distinguiam os olhos vagos, rolando à volta, para todos os lados, como os de um gato pardo.
Até que uma noite – valerá a pena dizê-lo? –, até que uma noite – a sua face marcava já sessenta anos –, até que uma noite – como isto mal chega a ser um conto, assiste-me o direito de não dizer tudo o que sei –, até que uma noite – estas coisas acontecem, estão a perceber? –, até que uma noite, sim, até que uma noite (…).
É isto o que hoje lhes queria contar.

Publicado na página dos "Cronistas do Bairro", no Porto24.

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