A primeira vez que aconteceu foi na noite da estreia. O actor Sascha Ziegelböck ficou tão perturbado com o caso que não dormiu até de manhã. Na noite seguinte, tudo se repetiu, exactamente como na anterior: subiu ao palco, fez alguns gestos ensaiados e começou a dizer o texto, na sua lúgubre, gutural e monótona voz de bode.
Um mar de ais e gritinhos varreu então a sala em ondas sucessivas. Uma após outra, as palavras do actor abriam feridas nos corpos dos espectadores. Ninguém escapou ileso. Depois, aplausos. Aplausos e mais aplausos. Os mais insistentes e vigorosos que ouvira em toda a carreira*. Nessa noite, houve quem saísse do teatro meio morto, mas muito satisfeito.
Nos dias que se seguiram, os espectáculos esgotaram. A mesma coisa: Sascha começava a dizer o texto e, acto contínuo, as palavras abatiam-se sobre os corpos com uma fúria descontrolada, abrindo golpes, arrancando carne, partindo ossos e, claro está, provocando desmaios, muitos desmaios. Lamentavelmente, não sou capaz de reproduzir a meticulosa escala de atrocidades causadas pelas palavras, não por pudor, mas por falta de imaginação e de expressões adequadas.
O actor não estava certo do que aquilo pudesse significar. A situação era rara sob todos os aspectos. A sua fama, no entanto, aumentava de dia para dia. Espectáculos esgotados, semanas, meses a fio. Pessoas dispostas a pagar o que fosse preciso para o ver e ouvir. E um longo rasto de feridos e estropiados amplamente felizes. Nem o diabo conseguiria engendrar tal coisa**.
Chegados a este ponto, parece-me pertinente abrir um parêntese para referir que nem tudo era perfeito no desempenho de Sascha Ziegelböck. Muito longe disso. Sei do que falo: eu estava lá.
* Até esse momento, Sascha Ziegelböck, ou Ziegelböck Sascha, não passara de um actor quase desconhecido, com pequenas participações em peças menores e produções modestas. Além disso, tinha a aparência de um grande pateta, com grandes e antiquadas patilhas que se uniam debaixo do queixo formando uma barba patriarcal.
** Daqui decorre que o diabo não é tão feio como o pintam.
Publicado na página dos Cronistas do Bairro, do Porto24.
Um mar de ais e gritinhos varreu então a sala em ondas sucessivas. Uma após outra, as palavras do actor abriam feridas nos corpos dos espectadores. Ninguém escapou ileso. Depois, aplausos. Aplausos e mais aplausos. Os mais insistentes e vigorosos que ouvira em toda a carreira*. Nessa noite, houve quem saísse do teatro meio morto, mas muito satisfeito.
Nos dias que se seguiram, os espectáculos esgotaram. A mesma coisa: Sascha começava a dizer o texto e, acto contínuo, as palavras abatiam-se sobre os corpos com uma fúria descontrolada, abrindo golpes, arrancando carne, partindo ossos e, claro está, provocando desmaios, muitos desmaios. Lamentavelmente, não sou capaz de reproduzir a meticulosa escala de atrocidades causadas pelas palavras, não por pudor, mas por falta de imaginação e de expressões adequadas.
O actor não estava certo do que aquilo pudesse significar. A situação era rara sob todos os aspectos. A sua fama, no entanto, aumentava de dia para dia. Espectáculos esgotados, semanas, meses a fio. Pessoas dispostas a pagar o que fosse preciso para o ver e ouvir. E um longo rasto de feridos e estropiados amplamente felizes. Nem o diabo conseguiria engendrar tal coisa**.
Chegados a este ponto, parece-me pertinente abrir um parêntese para referir que nem tudo era perfeito no desempenho de Sascha Ziegelböck. Muito longe disso. Sei do que falo: eu estava lá.
* Até esse momento, Sascha Ziegelböck, ou Ziegelböck Sascha, não passara de um actor quase desconhecido, com pequenas participações em peças menores e produções modestas. Além disso, tinha a aparência de um grande pateta, com grandes e antiquadas patilhas que se uniam debaixo do queixo formando uma barba patriarcal.
** Daqui decorre que o diabo não é tão feio como o pintam.
Publicado na página dos Cronistas do Bairro, do Porto24.
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