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Mensagens

Campo e Contracampo

O auditório onde fomos apresentar  Medeia , de Jean Anouilh , fica no interior de um shopping no Cacém . Um daqueles centros comerciais encapsulados no tempo desde os anos 80. Na parte central, há uma espécie de "selva" com palmeiras e plantas exóticas, atravessado por um regato artificial onde vivem peixes de aquário com tamanhos monstruosos e dezenas de cágados e tartarugas. Foi aí que Miguel Gomes filmou alguns planos de Tabu : a sequência que marca a transição para a segunda parte do filme, “Paraíso”, a partir da qual se narra a história dos amantes Aurora e Gian-Luca Ventura. Ali parado, na esplanada onde se filmou a conversa entre o velho Gian-Luca, Pilar e Santa, percebe-se melhor a intenção de Miguel Gomes: tudo o que resta daquela grande história de amor, passada em tempos coloniais portugueses, é uma "selva" de plástico, dentro de um shopping no Cacém.

Um processo simples

- Papai saiu; e o Armando está lá embaixo escrevendo. De fato, ele estava escrevendo ou mais particularmente: traduzia para o clássico um grande artigo sobre "Ferimentos por arma de fogo". O seu último truque intelectual era este do clássico. (...) O processo era simples: escrevia de modo comum, com as palavras e o jeito de hoje, em seguida invertia as orações, picava o período com vírgulas e substituía incomodar por molestar , ao redor por derredor , isto por esto , quão grande ou tão grande por quamanho , sarapintava tudo de ao invés , empós , e assim obtinha o seu estilo clássico que começava a causar admiração aos seus pares e ao público em geral. Gostava muito da expressão - às rebatinhas ; usava-a a todo o momento e, quando a punha no branco do papel, imaginava que dera ao seu estilo uma força e um brilho pascalinos e às suas ideias uma suficiência transcendente. De noite, lia o Padre Vieira, mas logo às primeiras linhas o sono lhe vinha e dormia sonhando-se fís

Uma estrada demasiado longa

AMA lança-se aos pés de Medeia Medeia, eu estou velha, eu não quero morrer! Segui-te, deixei tudo por ti. Mas a terra está ainda cheia de coisas boas (...). Esta versão de Medeia , da companhia Público Reservado, é pontuada por várias cortinas, reais ou metafóricas, que abrem e fecham cenas. Como um dedo invisível que virasse uma página e criasse um breve parêntese na história. Num desses momentos, a Ama é a única personagem em palco. Olha em frente, movendo um pau como se fosse um remo e estivesse a remar. Gestos lentos no início, mais velozes depois. Foi a Ama que criou Medeia, foi ela que a alimentou com o seu próprio leite, que a acompanhou na fuga com Jasão e os argonautas desde a Cólquida, testemunha silenciosa de todos os seus crimes. "Uma estrada demasiado longa.” Mas desta vez a Ama recusa acompanhá-la: não quer morrer. E à medida que Medeia atravessa o rio Aqueronte aproximando-se do mundo dos mortos, a Ama rema em sentido contrário, esforçando-se por alcanç

Uma despedida

A peça abre com Creonte a preparar-se para mais um dia, o dia em que vai morrer. Os gestos são lentos, de velho. Creonte parece já não reconhecer o seu corpo, a pele, os músculos, os dentes, os nervos. Já não é o guerreiro ágil e forte do passado. A sua história pesa toneladas sobre o corpo e a consciência. Há um momento, no entanto, em que o personagem ganha uma frescura e um brilho raros, e o tom muda. É um momento curto, mas que contém quase todas as ideias essenciais desta Medeia , da companhia Público Reservado. Creonte abre uma janela (o objecto não existe no cenário; o espectador imagina-a), o braço direito erguido, os dedos envolvendo a fechadura. O gesto é o mesmo de uma mão que erguesse um punhal. Um raio de luz incide directamente no seu peito. Creonte reage com um movimento que revela dor, mas também prazer. Uma espécie de golpe duro, mas igualmente misericordioso. A mão esquerda pousa no lugar onde a luz bate como que protegendo o coração. Ele ainda não sabe que é o ú

Pecado original

JASÃO volta-se para os homens.   Que um de vós faça guarda à volta do fogo até que não haja mais do que cinzas, até que os últimos ossos de Medeia estejam queimados. Os outros, venham. Regressemos ao palácio. É preciso viver, agora, assegurar a ordem, dar leis a Corinto e reconstruir sem ilusões um mundo à nossa medida para esperarmos morrer nele. Eis uma das marcas essenciais do texto de Jean Anouilh : a ironia. Ou melhor, um profundo pessimismo existencial que só pode traduzir-se numa longa e permanente ironia. Que mundo podemos reconstruir a partir da “nossa medida”? Se a medida do mundo é a de Jasão - que não é mais nem menos humano que os restantes personagens, incluindo Medeia, obviamente - não será um mundo condenado desde a primeira hora? Acontece que é o único que existe. Não temos outro. E o que Anouilh diz, parece-me, é que estamos condenados a viver nele sem possibilidade de salvação, manchados pelo pecado original da nossa imperfeita condição. Um mundo onde inevita

Fúria

A versão de Medeia , de Jean Anouilh, pela companhia Público Reservado, inclui a intervenção ao vivo de uma banda rock. É uma originalidade que não está obviamente no texto de Anouilh, mas que, na leitura de Eduarda Neves , funciona como uma tentativa de introduzir na peça uma espécie de coro grego. É uma hipótese muito curiosa e estimulante. Aceitando essa hipótese, a banda rock é um coro “negativo”, quer dizer, não ajuda a “esclarecer” a história; pelo contrário, acentua e aprofunda o drama e a solidão de cada personagem. As intervenções do coro excluem e afastam ainda mais os personagens do mundo: “não há razão, não há luz, não há descanso.” Medeia , de Jean Anouilh, pela companhia Público Reservado.  Teatro do Campo Alegre, 4 a 7 de Outubro.

Já não gosto de sangue

MEDEIA coloca-se diante de Creonte   Creonte, tu estás velho. És rei há muito tempo. Já viste homens e escravos que cheguem. Já fizeste cozinhados ignóbeis. Olha-me bem nos olhos e examina-me. Eu sou Medeia. (...) Eu sou da tua raça. Da raça daqueles que julgam e que decidem sem voltar atrás e sem remorsos. Não estás a agir como rei, Creonte. Se queres dar a Jasão a tua filha, mata-me imediatamente com a velha e as crianças que dormem ali e com o cavalo. (...)  CREONTE Por que é que tu queres morrer?  MEDEIA  Por que é que tu queres que eu viva, agora? Nem tu, nem eu, nem Jasão têm interesse em que eu ainda esteja viva dentro de uma hora, sabe-lo bem.  CREONTE faz um gesto, diz de repente em surdina Já não gosto de sangue. (...) Vês, estou a ficar velho. Uma noite é demasiado para ti. É o tempo de dez dos teus crimes. Eu deveria recusar o teu pedido… Mas também eu matei muito, Medeia. E nas aldeias conquistadas onde entrava à cabeça dos meus soldados bêbados, muitas c