A peça abre com Creonte a preparar-se para mais um dia, aquele em que vai morrer. Os gestos são lentos, de velho. Creonte parece já não reconhecer a sua pele, os músculos, os dentes, os nervos. Já não é o guerreiro ágil e forte do passado. A sua história pesa toneladas sobre o corpo e a consciência. Há um momento, no entanto, em que a personagem ganha uma frescura e um brilho raros, e o tom muda. É um momento curto, mas que contém muitas das ideias essenciais desta Medeia, da companhia Público Reservado. Creonte abre uma janela (o objecto não existe no cenário; o espectador imagina-o), o braço direito erguido, os dedos envolvendo a fechadura. O gesto é o mesmo de uma mão que erguesse um punhal. Um raio de luz incide-lhe directamente no peito. Creonte reage com um movimento ambíguo, que tanto pode ser de dor como de prazer. A mão esquerda pousa no lugar onde a luz bate, como que protegendo o coração. Ele ainda não sabe que é o último raio de sol da sua vida, mas suspeita. Medeia é a neta de Hélios, o deus-Sol, e aquele golpe de luz, de certa forma, é ela quem o desfere. Creonte é um homem condenado. A primeira cena da peça é a sua despedida.
Medeia, de Jean Anouilh, pela companhia Público Reservado.
Teatro do Campo Alegre, 4 a 7 de Outubro.
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