MEDEIA coloca-se diante de Creonte
Creonte, tu estás velho. És rei há muito tempo. Já viste homens e escravos que cheguem. Já fizeste cozinhados ignóbeis. Olha-me bem nos olhos e examina-me. Eu sou Medeia. (...) Eu sou da tua raça. Da raça daqueles que julgam e que decidem sem voltar atrás e sem remorsos. Não estás a agir como rei, Creonte. Se queres dar a Jasão a tua filha, mata-me imediatamente com a velha e as crianças que dormem ali e com o cavalo. (...)
CREONTE
Por que é que tu queres morrer?
MEDEIA
Por que é que tu queres que eu viva, agora? Nem tu, nem eu, nem Jasão têm interesse em que eu ainda esteja viva dentro de uma hora, sabe-lo bem.
CREONTE faz um gesto, diz de repente em surdina
Já não gosto de sangue. (...) Vês, estou a ficar velho. Uma noite é demasiado para ti. É o tempo de dez dos teus crimes. Eu deveria recusar o teu pedido… Mas também eu matei muito, Medeia. E nas aldeias conquistadas onde entrava à cabeça dos meus soldados bêbados, muitas crianças…
Numa das cenas mais belas e impressionantes de Medeia, Creonte arrasta às costas um pesadíssimo Jasão. É o fardo mais difícil de uma longa vida carregada de mortes e crimes. Uma vida longa de guerreiro frio, ambicioso e sanguinário. Para cada glória militar e política, muitos mortos. Creonte, o rei de Corinto, está velho e com o peso da velhice chega uma espécie de vago sentido de humanidade. A decisão de dar mais tempo a Medeia revela, de certa maneira, que o seu “discurso de estado” já só obedece ao hábito e costume. Um brevíssimo indício de luz no meio da catástrofe.
Medeia, de Jean Anouilh, pela companhia Público Reservado.
Teatro do Campo Alegre, 4 a 7 de Outubro.
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