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Mensagens

Um espelho em movimento

A experiência é relativamente simples de descrever. Um personagem vestido de marinheiro deambula à noite por uma cidade - neste caso, o Porto -, carregando às costas uma espécie de máquina de projecção. A máquina projecta um misterioso filme branco, que ondeia e se dissipa no escuro, a partir das costas do personagem. A experiência de Tiago Madaleno , fixada e dada a ver através de um conjunto de slides, como numa espécie de filme em stop motion , parece remeter para O Homem da Máquina de Filmar , de Dziga Vertov. Mas o que Tiago Madaleno faz nesta obra, Passos , é como que a ideia de Vertov invertida por um espelho. O que começa em Vertov, termina em Madaleno. Se Vertov capta a realidade pelo olho da câmara (kino-glaz) , Madaleno muda a realidade pelo olho do projector. Se Vertov filma um dia em Moscovo, Madaleno projecta a luz de um filme na noite do Porto. Se Vertov posiciona o personagem - Mikhail Kaufman - atrás da máquina de filmar, Madaleno coloca o seu personagem - ele próp

Trabalhos de demolição

A memória é uma substância inteiramente maleável. Qualquer coisa elástica, que pode ser mudada, manipulada, apagada, reconstruída, uma e outra vez, vezes sem conta, até ao limite do inumano. Nos primeiros planos de The First Shot,  de Federico Francioni e Yan Cheng, a câmara concentra-se nos movimentos de uma máquina de demolição, empenhada em desmantelar um bairro de casas de tijolo, em Pequim. A facilidade com que derruba paredes, telhados, casas inteiras onde viveram sucessivas gerações, é a mesma com que apagamos certos elementos da nossa memória. As antigas casas de tijolo desaparecem para dar lugar a arranha-céus. Depois da demolição, há velhos que revolvem silenciosamente os escombros em busca de tijolos que possam ser reutilizados. Uma espécie de melancólica arqueologia, que só pode ser desempenhada por velhos, os únicos que conhecem o valor daqueles tijolos e a maneira minuciosa como se combinam para erguer uma casa. Os velhos respigadores transformam-se assim nos guardiõ

Il faut nous donner votre argent...

Com a minha carta de bacharel num canudo, trepei enfim um dia para o alto da Diligência, dizendo adeus às veigas do Mondego. Justamente nesse mesmo tejadilho ia um francês, um commis-voyageur. Era um colosso, de lunetas, duro e brusco, com um queixo maciço de cavalo, que, à maneira que o coche rolava, ia lançando através dos vidros defumados um olhar às terras de lavoura, aos vinhedos, aos pomares, como se os sopesasse e lhes calculasse o valor, torrão a torrão. Não sei porquê, deu-me a impressão de um agiota, estudando as terras dum morgado arruinado. Conversei com este animal; ele pareceu surpreendido da minha facilidade no francês, do meu conhecimento do francês, da política de França, da literatura de França. De facto, eu conhecia romancistas, filósofos franceses, que ele ignorava. E ainda recordo o tom de alta protecção, com que me disse, batendo-me no ombro, enquanto nós rolávamos na estrada, vendo em baixo, no vale, o mosteiro da Batalha:  - Vous avez raison, il faut aimer la F

"145 poemas", de Kaváfis

Este livro começou a ser escrito em 1896, demorou vários anos a ser traduzido pelo Manuel Resende , e é apresentado no próximo sábado , 18 de Novembro, às 18h30, na Casa Fernando Pessoa , em Lisboa. É a mais bela e perfeita versão dos poemas de Konstantinos Kaváfis em língua portuguesa. A edição é da Flop .

N.º 10 da Rua Lepsius

[Konstantinos Kaváfis] vivia desde 1907 no segundo andar do n.º 10 da Rua Lepsius, [em Alexandra], microcosmo onde o seu quotidiano se circunscrevia. «Onde poderia eu viver melhor?» Confidenciou um dia. «No andar por de baixo do meu, o bordel trata da carne. Do outro lado da rua há a igreja que perdoa os pecados. E depois, mais adiante, há o hospital, onde morremos.» Mário Avelar.

Quatro breves notas sobre O Cavalo de Turim

Não havia horizonte, salvo não haver horizonte. F. Pessoa, A estrada do esquecimento. 1) Endgame Se Béla Tarr decidisse filmar Endgame , de Samuel Beckett, talvez o resultado não fosse muito diferente de O Cavalo de Turim . Uma casa isolada numa planície quase deserta. Dois personagens ali encerrados, um homem e uma mulher, pai e filha. Uma porta e uma janela. O que sabemos do exterior resume-se quase exclusivamente ao que é possível observar a partir dessa janela. Dias e noites sucedendo-se, aparentemente iguais entre si. HAMM (...) Como está tudo? CLOV Como está tudo? Numa palavra? É o que queres saber? Um segundo (aponta o óculo para fora [da janela], observa, baixa o óculo, volta-se para Hamm.) Mortibus. Samuel Beckett, Fim de partida . 2) Deus criou o mundo em seis dias, o mesmo tempo que demorou a destruí-lo A narrativa de O Cavalo de Turim decorre em seis dias, ao longo dos quais cada coisa se vai apagando, numa espécie de lento e inexplicável desmaio.

1971-1986

Sequência de abertura de Morte em Veneza , de Luchino Visconti, 1971. Em fundo, música de Mahler: Adagietto,  da Sinfonia n.º 5 . Sequência de abertura de À flor do mar, de João César Monteiro, 1986. Em fundo, música de Bach, Adagio ma non tanto,  da Sonata n.º 3 em mi menor, BWV 1016 .