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Mensagens

A fair field full of folk

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende VII Um grito indomado cerca a terra toda; é a revolta dos escravos. (Um Dia de Vida.) Quantas vezes na poesia de hoje lemos a palavra «escravos»? Quantas vezes a palavra «oprimidos»? E «povo»? A despeito dos seus possantes pulmões e grossos punhos, o grande espectro já não paira sobre a Europa e o mundo, esfumou-se, e o ar ficou ainda mais irrespirável. Dele restam milhões de sementes de angústia, plantadas no texto, como intermináveis reticências. Sementes significativas, mas é tudo, e esse tudo não é suficiente. Juro que acreditei e acredito Na força imensa das massas populares. Eu sou dessa massa - e que doutra massa seria? Só no mundo, mesmo que esteja só no mundo, Outra coisa não posso dizer, nem outra língua falar. O homem é uma coisa Que há-de ter de ser. (Escrever nas Costas.)

O homem da câmara de filmar

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende VI E há momentos em que o ritmo acelera, a marcha avança, vertiginosa, até ao fundo do século XX. O leitor corre por dentro do filme de Vertov, numa louca e febril espiral com Maiakovski e Rodchenko. Mas o olho do poeta vê mais do que o olho da câmara. Vê a imagem e o que está por trás dela, o objecto e o seu avesso de minuciosas rodas dentadas, o homem e o seu desespero cor de fogo, o homem e a sua insondável solidão. Eia pontes! Eia gruas, braços arranhando o nevoeiro dos portos! Eia formigamento de braços moles aguentando a estiva contra o peso e o sol! Eia suor, eia rumor, ronronar, triturar, estuar, estourar abrir das ostras e da noite, eia súbito lançamento da manhã, eia multidão invadindo as ruas, invadindo os transportes, os portos, a alma, os olhos, invadindo tudo! Eia! Tinir das chaves de fenda, borbulhar do ferro em brasa, chispas de aço fendendo a escuridão Eia! Proteína da argamassa, cimento, estuque, fermento dos seis

Surrealismo

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende V Não é preciso revolver as páginas para encontrar as longas e cintilantes raízes do surrealismo. Estão por toda a parte, no fundo e à superfície. «Vidros arestas peixes epilépticos»; «ali no marulhar das tardes barbitúricas.» As raízes do surrealismo, engenhosamente combinadas com humor, referências clássicas, citações bíblicas, acontecimentos, realismo . Se a palavra não é sinónimo directo de liberdade é pelo menos o instrumento possível para a alcançar. Um insulto atirado à cara da História. A resistência também se faz com a gramática, o papel e as palavras, as furiosas pedras que nos restam. Até que ponto pode chegar um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos? – a frase que poderemos intitular de central. E esta posição de abjecção, de desespero irresignável, leva-nos à única posição válida: – SOBREVIVER, mas Sobreviver LIVRES. António Maria Lisboa, Erro Próprio .

Poesia do real

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende IV Toda a poesia é do real. Toda a poesia é do quotidiano. Sentir e pensar são reais. O absoluto e o relativo são reais. O bem e o mal. Deuses e demónios também são reais. O sonho é real. O mistério é real. Os pequenos acontecimentos são reais. São reais as cidades, as aldeias, os campos, os cafés, as filas de trânsito, as salas de espera dos hospitais, o turismo. São reais o crime, o genocídio, o fogo amigo, os danos colaterais. Os bancos, as taxas de juro, a dívida. O suicídio é real. A história também. É tudo tão real que o mundo é uma ferida aberta em cada um de nós. E o pouco alívio que a poesia nos dá, não é pouco, é muito. Ocupamos um território de gestos apalpamos à nossa volta um estádio de liberdade Passam mendigos sapateiros mulheres homens concretos mineralogia urbana em seus passos comedidos despidos até por dentro cauteleiros mancos por não poderem ser mais nada  Que vêm aqui fazer por uns minutos a esta praça Homens m

História

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende III Universo feito de um só pano (Soneto Americano) Tudo o que existe por fora e por dentro de nós é feito da mesma substância, e essa substância é a História. Ainda que vivêssemos sete vidas, nada de essencial mudaria. Amor, sonho, frio, noite, fome, ódio, guerra. A História está por todo o lado, no ar que respiramos, na mais longínqua das nossas células . É o chão movediço que pisamos, os mortos que carregamos. Se a História nunca se repete porque é que tudo se repete? Século após século, milhões de dias após milhões de dias, horas, minutos, segundos. Existirá alguma força capaz de a mudar? Um dia, a utopia deixará de ser utopia? Arre estou farto de não haver aqui nada De perscrutar com o mínimo olhar o mínimo gesto De ver o barbeiro da rua coleccionar selos sebosamente De haver sempre este cheiro a peixe frito de ser sempre tão fisicamente meio-dia Quando é meio-dia De estar telhados sobre telhados casas sobre casas olhando a imen

Queda

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende II Estavam nus e despiram-se. (Love Store) Cada poema é uma branda, lenta e trágica queda para dentro. Um mergulho que começa em pleno mundo e avança pelo interior da pele. Porque não há nada que nos faça mergulhar mais profundamente na nossa solidão, senão participar do mundo e de todas as suas coisas, alegrias e dramas. Por isso, um verso branco conduz a um verso mais escuro. Uma coisa viva contém já a sua promessa de morte. Um restolhar de asas é uma espécie de pequena catástrofe. Desce Desce Desce para que te chegue ao fundo rebenta-me os pulmões os olhos as veias Ser tudo tão obscuro e solar (Crítica da Razão Pragmática.)

Partitura

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende I O que mais impressiona é a música. Uma música de fundo, sempre presente, como um ostinato. Uma onda vagamente melancólica, que ecoa por toda a parte, num volume próximo do silêncio. Como um murmúrio, um sopro, um lamento. Uma música que nada exige, que não se impõe, não grita, que apenas se vai instalando, pouco a pouco, sem pressas, dentro do ouvido. A sempiterna e desolada música que atravessa os séculos. É o leve clamor do nosso desespero, o baixo contínuo do nosso destino mortal.  Não fosse tão difícil morrer tão lentamente. (Eu Canto os Momentos Nativos.)

De tanto serem repetidos é como se tivessem realmente acontecido

[Karl] Kraus é, nesse contexto, um intérprete mortal para os mitos que circulam [sobre os verdadeiros motivos para o deflagrar da I Guerra]? Uma das coisas que o Kraus mostra é como se gera essa cultura de violência, e como os principais responsáveis, aos olhos dele, são as pessoas que lidam com as palavras. Os intelectuais, os escritores, os jornalistas, etc. Personagens com bastante proeminência e que são, justamente, aqueles que têm a responsabilidade pelo discurso que se produz, que o usam irresponsavelmente, e transformam também as palavras em armas. Pode dar um exemplo? Um dos aforismos que surge nos "Os Últimos Dias da Humanidade" diz-nos: «Um despacho noticioso (ou uma notícia de jornal) é um instrumento de guerra como a granada, que também não toma quaisquer factos em consideração». Quando hoje em dia se fala na pós-verdade, tinha já lido tudo isso no Kraus. Quando foi para a frente a guerra no Iraque, em que os editorialistas… José Manuel Fernandes, toda essa ge

Terminar é começar

Uma linha pode ter um princípio e um fim. Um círculo não tem uma coisa nem outra. O círculo é um movimento perpétuo. Como a Terra que gira em torno de si mesma e em torno do Sol. Como a lua que gira em torno da Terra e todas as luas que giram em torno dos planetas. Como todos os planetas que giram em torno de si mesmos e em torno do Sol. Toda a vida é circular. Eis a lei inescapável. Nascemos, vivemos, morremos e da nossa matéria surgirá outra vida, e desta outra ainda. Ou digamos que o fim precede o princípio, E que o fim e o princípio estiveram sempre ali Antes do princípio e depois do fim. E tudo é sempre agora. (T. S. Eliot, Quatro Quartetos .) O mundo gira sobre si mesmo, o mundo novo e o mundo velho, o mundo velho e o mundo novo, e todos repetimos o mesmo movimento. Giramos sobre nós mesmos, numa espécie de instinto de defesa, que inevitavelmente nos afasta do mundo. O mesmo acontece com as sociedades, as regiões, os continentes, a política. O círculo define uma fronteira

341 - O peso mais pesado

E se, um dia ou uma noite, um demónio se viesse introduzir na tua suprema solidão e te dissesse: «Esta existência, tal como a levas e a levaste até aqui, vai-te ser necessário recomeçá-la sem cessar; sem nada de novo; muito pelo contrário! A menor dor, o menor prazer, o menor pensamento, o menor suspiro, tudo o que pertence à vida voltará ainda a repetir-se, tudo o que nela há de indizivelmente grande e de indizivelmente pequeno, tudo voltará a acontecer, e voltará a verificar-se na mesma ordem, segundo a mesma impiedosa sucessão... esta aranha também voltará a aparecer, este lugar entre as árvores, e este instante, e eu também! A eterna ampulheta da vida será invertida sem descanso, e tu com ela, ínfima poeira das poeiras!...» Não te lançarias por terra, rangendo os dentes e amaldiçoando esse demónio? A menos que já tenhas vivido um instante prodigioso em que lhe responderias: «Tu és um deus: nunca ouvi palavras tão divinas!» Se este pensamento te dominasse, talvez te transformasse e

Obras ricas em fosfato

Fechou as pastas e, desorientado, voltou a ceder à depressão. A fim de mudar a direcção das suas ideias, experimentou ler alguma coisa que o acalmasse e, na esperança de arejar o cérebro, recorreu a narcóticos literários, aquele tipo de livros que mais cai nas boas graças dos convalescentes e dos inválidos que não podem cansar-se com obras mais tetânicas e mais ricas em fosfato: os romances de Dickens. Mas estes volumes produziram um efeito contrário ao que ele esperava: as suas amantes castas, as suas heroínas protestantes vestidas até ao pescoço, andavam nas estrelas e não iam para além de um baixar de olhos, de um corar, de um chorar de alegria e de um apertar de mãos. Esta pureza exagerada logo o precipitou num excesso oposto. Joris-Karl Huysmans, Ao arrepio . Tradução de Daniel Jonas.

Of course he shot a fucking elephant

George Orwell’s biographer Bernard Crick lunched with the author’s widow, Sonia, at Bertorelli’s in London. They were talking about “Shooting an Elephant,” or, more accurately, about whether Orwell really did shoot an elephant in Burma. “‘Of course he shot a fucking elephant,’ Sonia shouted. ‘He said he did. Why do you always doubt his fucking word?’” Because, Crick replied, “he was a writer, not a bloody cub reporter.” Geoff Dyer, Nothing But - The untruths of memory.

Explicação do mundo

Na arqueologia mexicana cada estátua, cada objecto, cada baixo-relevo, significam alguma coisa que significa alguma coisa que por sua vez significa alguma coisa. Um animal significa um deus que significa uma estrela que significa um elemento ou uma qualidade humana e assim sucessivamente. Estamos no mundo da escrita pictográfica, os antigos Mexicanos, para escreverem, desenhavam figuras e, mesmo quando desenhavam, era como se escrevessem: cada figura apresenta-se como um enigma a decifrar. Italo Calvino, Palomar . Tradução de João Reis.

Ouro, jóias e festas

Existe um princípio elementar no marketing que afirma o seguinte: um produto deve «prometer» mais do que aquilo para o qual foi feito, deve proporcionar uma «experiência». Quer dizer, se um consumidor acreditar que ao comprar um gel de duche está a comprar, sobretudo, uma maneira nova e mais excitante de tomar banho, o marketing e a publicidade foram eficazes. Ao assistir a muito do teatro que se faz hoje entre nós, fico com a sensação de que uma boa parte dos criadores acompanha este princípio de proporcionar uma «experiência» ao público. Claro que o teatro é, por definição, uma «experiência». Mas que «experiência»? Parece-me que vivemos um momento em que se recorre a todos os truques - bons e maus - para transformar qualquer peça de teatro numa «experiência espectacular». Por vezes, parece que a relevância de uma peça se mede pela intensidade das gargalhadas e dos aplausos do público, como num programa de televisão emitido em prime time , mesmo que a peça seja o mais ibseniano dos dr

Em defesa das coisas inúteis

Perante tais considerações é possível objectar que, enquanto a investigação tem sempre em mira uma utilidade concreta, o mesmo não pode ser dito do estudo, que, enquanto representa uma condição permanente e quase uma forma de vida, dificilmente pode reivindicar uma utilidade imediata. Aqui é preciso inverter o lugar comum segundo o qual todas as actividades humanas são definidas pela sua utilidade. Por força desse princípio, as coisas evidentemente mais supérfluas estão hoje inscritas num paradigma utilitário, recodificando como necessidades actividades humanas que sempre foram feitas apenas por puro prazer. Deveria ser claro, de facto, que numa sociedade dominada pela utilidade são justamente as coisas inúteis que se tornam um bem a salvaguardar. A essa categoria pertence o estudo. Aliás, a condição estudantil é para muitos a única ocasião para fazer a experiência, hoje cada vez mais rara, de uma vida que se subtrai a fins utilitários. Por isso, a transformação das faculdades de human

Da natureza dos coelhos

Quando o Manuel Resende regressou a Portugal, depois de longos anos emigrado em Bruxelas, instalou-se numa casa nos arredores de Santarém. Em volta da casa havia um terreno de lavoura e a ideia do Manuel era dedicar-se à agricultura. Ainda em Bruxelas, tinha estudado métodos de cultivo modernos, sustentáveis e amigos do ambiente, que dispensavam os químicos. Os progressos agrícolas do novel campino foram lentos, mas encorajadores. Nessa altura, as nossas conversas incluíam beringelas, tomates, pepinos e alfaces. Tudo correu pelo melhor até ao dia em que apareceram os coelhos. Dezenas e dezenas de coelhos. Famílias inteiras de orelhudos arrasaram a delicada e biológica agricultura, e devoraram tudo até ao último pé de alface. O Manuel Resende nada fez para os impedir: roer beringelas sem químicos faz parte da natureza dos coelhos. Hoje, é lançada em Lisboa a Poesia Reunida , do Manuel Resende. Hoje, é o dia em que os coelhos reaparecem para lhe devorar a horta. Nenhum poema, nenhum v

A origem da couve

No paraíso terrestre, no luminoso dia em que as flores foram criadas, antes que Eva fosse tentada pela serpente, o maligno espírito aproximou-se da mais bela rosa, no momento em que esta estendia, à carícia do celeste sol, a encarnada virgindade dos seus lábios. – És bela. – Sou – disse a rosa. – Bela e feliz – prosseguiu o diabo. – Tens a cor, a graça e o aroma. Mas… – Mas? – Não és útil. Não vês estas vastas árvores carregadas de bolotas? Além de frondosas, dão alimento a multidões de seres animados, que se detêm sob os seus ramos. Rosa, ser bela é pouco… A rosa – tentada, como seria depois a mulher – desejou então a utilidade, de tal modo que houve palidez na sua púrpura. Passou o bom Deus, depois do romper da aurora. – Pai – disse aquela princesa floral, agitando-se na sua perfumada beleza – quereis fazer-me útil? – Seja, minha filha – respondeu o Senhor, sorrindo. E o mundo viu então a primeira couve. Rubén Darío, Curiosidades Literárias e Outros Contos.  Colecção Av