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Mensagens

To a Green God

Num dos monólogos de Charles Cros , O Dia Verde , o protagonista, Sr. Galipaux, é um empregado de escritório parisiense, que decide acompanhar um casal amigo num passeio ao campo. É sábado, dia de folga, e o apelo da natureza é irresistível. “Oh! o ar, a verdura, correr, pular, dançar, cantar, lalai, lalai, um fato leve, o meu panamá e ala que se faz tarde!” Pouco a pouco, porém, o suave sonho de uma digressão pelos bosques, transforma-se numa espécie de pesadelo verde. Não é apenas a natureza que é verde, tudo à sua volta parece plasmado nessa cor. As pessoas estão vestidas de verde, há um papagaio verde, a comida é verde, as mesas e as cadeiras da casa de pasto são verdes, o absinto é verde, as casas têm portadas verdes, tudo, de uma maneira ou de outra, e em graus diferentes, é verdíssimo. Num só dia, o personagem percorre todos os círculos do inferno verde, acabando na cama com icterícia, "verde como puré de ervilhas". Em O Raio Verde , de Eric Rohmer, inspirado no l

As Afinidades Electivas

Vieira da Silva, Le bout du monde , 1986. Biblioteca de Antonio Candido. Porto

Isto está ruim para os cavalos

Almanaque de Outono , de Béla Tarr, começa com uma epígrafe sobre fundo negro: Mato-me e não vejo o carreiro; Perdemo-nos, sim! Tanto monta! Estou que nos leva o diabo, Faz-nos dar volta atrás volta. Trata-se de um excerto da segunda estrofe do poema Demónios , de Púchkin, que, de resto, também serviu de epígrafe ao romance com o mesmo título de Dostoiévski . Ora, o curioso é que o poema contém vários versos que parecem legendas de planos de O Cavalo de Turim , o filme-monumento que Tarr realizou quase 30 anos após o  Almanaque de Outono . Galopam nuvens, rodam nuvens (...) Preto é o céu, a noite breu. Lá vou, lá vou, por campo aberto, Guizos din-din a tilintar... Nem que não queira mete medo, Medo o descampado alvar! «Arre, cocheiro, anda!...» — «E forças? Isto está ruim para os cavalos; (...) No jogo túrbido da lua, Ajunta-se o bando horrendo, Díspar, vasto, redemoinha Como as folhas em Novembro… (...) Aleksandr Púchkin, O cavaleiro de bronze e outros poemas . Tradução de Nin

Reality Show

Se, num sonho louco, Béla Tarr decidisse fazer um reality show , o resultado talvez não andasse longe do Big Brother . Almanaque de Outono é uma espécie de Big Brother filmado por um fanático da filosofia e génio do cinema.

Haverá outro tema?

No fabuloso texto de Edward Bond,  Using Lulu , dedicado ao teatro de Frank Wedekind, e publicado no Manual de Leitura de Lulu , há digressões que podem ser lidas como comentários a Provisional Figures . De resto, são infindáveis as ligações que se podem estabelecer entre as duas peças. O tema é exactamente o mesmo. Haverá, na verdade, outro tema? O capitalismo – o Dinheiro Total – subordina tudo às necessidades do mercado. Isto transforma de forma profunda a sociedade. Na verdade, a sociedade ocidental é a primeira que não cria uma cultura – ela é apenas um sistema. Não vivemos para criar uma cultura – existimos para manter um sistema. E, ao mantê-lo, não promovemos a humanização, como sucederia caso criássemos uma cultura. O capitalismo desumaniza-nos, não porque não seja suscetível de persuasão moral, mas por razões de ordem estrutural. Ao dinheiro dá-se precedência sobre outros elementos da sociedade, e assim damos novos sentidos a nós mesmos e à sociedade. (...) Para se autopre

Com o tempo fui-me habituando

Um ascendente possível de Provisional Figures , de Marco Martins, é Tempos Modernos , de Chaplin. Em ambos os casos, mulheres e homens são trágica e tenazmente devorados pela grande máquina. Humanos e animais transformados em alimento para o sistema fabril de trabalho em série. Elos de uma engrenagem altamente organizada, que é preciso manter com a docilidade de escravos. Alguns dos «actores» de Provisional Figures são operários de uma «fábrica de perus», em Great Yarmouth, cidade costeira do sul de Inglaterra. O trabalho envolve gestos automáticos, executados de manhã à noite: matar os perus, depená-los, arrancar-lhes as vísceras, cortar as asas e as patas, separar os peitos, etc. Uma espécie de «dança macabra», vinte e quatro horas por dia, sem intervalos ou falhas. Equipámo-nos num corredor comprido que tinha uma porta com cortinas de plástico, onde havia um cheiro intenso a merda e sangue. Quando abri as cortinas — qual é o meu espanto quando vejo perus pendurados por todo o

Gógol, o ghost writer de Harms

OMELETA — Permita que lhe pergunte: com quem tenho a honra de falar? JEVÁKIN — Jevákin, tenente na reserva. E, por minha vez, permita-me a pergunta: com quem tenho a felicidade de conversar? OMELETA — Ivan Pávlovitch Omeleta, intendente. JEVÁKIN (que ouviu mal) — Sim, também já comi alguma coisa. Sabia que o caminho ia ser longo e fazia frio: então, comi arenque com pão. OMELETA — Não, o senhor percebeu mal: Omeleta é o meu apelido. JEVÁKIN (com uma vénia) — Ah, desculpe! Sou um pouco duro de ouvido. Pareceu-me que o senhor se referiu a uma omeleta que tinha comido. OMELETA — Pois, nada a fazer! Já quis pedir ao general que me autorizasse a mudança de nome para Estrelado, mas os meus amigos disseram que ia dar ao mesmo. JEVÁKIN — Acontece, sim senhor. Na nossa terceira esquadra, todos os oficiais e marujos tinham nomes esquisitíssimos: Lixeirov, Aldrabónov, Pútridov, o tenente. Um aspirante da marinha, e bastante bom aspirante, tinha por nome Buraco. O comandante, às vezes, gr