Almanaque de Outono, de Béla Tarr, começa com uma epígrafe sobre fundo negro:
Mato-me e não vejo o carreiro;
Perdemo-nos, sim! Tanto monta!
Estou que nos leva o diabo,
Faz-nos dar volta atrás volta.
Trata-se de um excerto da segunda estrofe do poema Demónios, de Púchkin, que, de resto, também serviu de epígrafe ao romance com o mesmo título de Dostoiévski. Ora, o curioso é que o poema contém vários versos que parecem legendas de planos de O Cavalo de Turim, o filme-monumento que Tarr realizou quase 30 anos após o Almanaque de Outono.
Galopam nuvens, rodam nuvens
(...)
Preto é o céu, a noite breu.
Lá vou, lá vou, por campo aberto,
Guizos din-din a tilintar...
Nem que não queira mete medo,
Medo o descampado alvar!
«Arre, cocheiro, anda!...» — «E forças?
Isto está ruim para os cavalos;
(...)
No jogo túrbido da lua,
Ajunta-se o bando horrendo,
Díspar, vasto, redemoinha
Como as folhas em Novembro…
(...)
Aleksandr Púchkin, O cavaleiro de bronze e outros poemas. Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra.
E entre os demónios de Púchkin e os de Béla Tarr, espreitam os de Pessoa:
A noite estava ilegível. Não se via céu nem terra - só escuridão. Nem mesmo podia haver pelos sentidos a convicção de que havia céu e terra; a escuridão tirava-lhes os lugares. Só havia a escuridão, sem forma, lugar ou fundo. (...)
O som dos passos dos cavalos, moles e duros na terra húmida, e de vez em quando soantes, chapinhando, quando calcavam na água - só assim adivinhávamos a terra - assim e no que dela nos vinha transmitido ao corpo através das vibrações dos corpos dos cavalos que a pisavam, à medida que iam pisando.
Fernando Pessoa, A estrada do esquecimento.
Mato-me e não vejo o carreiro;
Perdemo-nos, sim! Tanto monta!
Estou que nos leva o diabo,
Faz-nos dar volta atrás volta.
Trata-se de um excerto da segunda estrofe do poema Demónios, de Púchkin, que, de resto, também serviu de epígrafe ao romance com o mesmo título de Dostoiévski. Ora, o curioso é que o poema contém vários versos que parecem legendas de planos de O Cavalo de Turim, o filme-monumento que Tarr realizou quase 30 anos após o Almanaque de Outono.
Galopam nuvens, rodam nuvens
(...)
Preto é o céu, a noite breu.
Lá vou, lá vou, por campo aberto,
Guizos din-din a tilintar...
Nem que não queira mete medo,
Medo o descampado alvar!
«Arre, cocheiro, anda!...» — «E forças?
Isto está ruim para os cavalos;
(...)
No jogo túrbido da lua,
Ajunta-se o bando horrendo,
Díspar, vasto, redemoinha
Como as folhas em Novembro…
(...)
Aleksandr Púchkin, O cavaleiro de bronze e outros poemas. Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra.
E entre os demónios de Púchkin e os de Béla Tarr, espreitam os de Pessoa:
A noite estava ilegível. Não se via céu nem terra - só escuridão. Nem mesmo podia haver pelos sentidos a convicção de que havia céu e terra; a escuridão tirava-lhes os lugares. Só havia a escuridão, sem forma, lugar ou fundo. (...)
O som dos passos dos cavalos, moles e duros na terra húmida, e de vez em quando soantes, chapinhando, quando calcavam na água - só assim adivinhávamos a terra - assim e no que dela nos vinha transmitido ao corpo através das vibrações dos corpos dos cavalos que a pisavam, à medida que iam pisando.
Fernando Pessoa, A estrada do esquecimento.
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