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Com o tempo fui-me habituando

Um ascendente possível de Provisional Figures, de Marco Martins, é Tempos Modernos, de Chaplin. Em ambos os casos, mulheres e homens são trágica e tenazmente devorados pela grande máquina. Humanos e animais transformados em alimento para o sistema fabril de trabalho em série. Elos de uma engrenagem altamente organizada, que é preciso manter com a docilidade de escravos.

Alguns dos «actores» de Provisional Figures são operários de uma «fábrica de perus», em Great Yarmouth, cidade costeira do sul de Inglaterra. O trabalho envolve gestos automáticos, executados de manhã à noite: matar os perus, depená-los, arrancar-lhes as vísceras, cortar as asas e as patas, separar os peitos, etc. Uma espécie de «dança macabra», vinte e quatro horas por dia, sem intervalos ou falhas.

Equipámo-nos num corredor comprido que tinha uma porta com cortinas de plástico, onde havia um cheiro intenso a merda e sangue. Quando abri as cortinas — qual é o meu espanto quando vejo perus pendurados por todo o lado, a deitar sangue. Aquele cheiro pestilento a azedo entranhado nos nossos corpos. Vomitei-me toda. Aquilo era horrível. Vi homens grandes a chorar, não queriam estar ali e não aguentavam aquilo. Foram embora. Com o tempo fui-me habituando e acabei por ficar na Bernard Matthews oito anos. (Maria do Carmo, operária e «actriz» em Provisional Figures.)

Os operários que não aguentam e desistem, caem no desemprego. Outros têm acidentes de trabalho ou contraem lesões físicas para toda a vida. Outros ainda acabam engolidos pela depressão. De uma maneira ou de outra, ninguém escapa às exigências desumanizantes e disciplinadoras do sistema. O resultado é sempre o mesmo, dir-se-ia quase automático: desgraça e pobreza.

Provisional Figures, com o seu extraordinário poder de síntese, é uma peça sobre a grande tragédia do nosso tempo: nunca tivemos tantos recursos e tecnologia ao nosso dispor, mas a que preço? O sistema que nos permite comer mais e viver mais tempo, também chamado «progresso», é o mesmo que nos devora até à última das células, que nos transforma em escravos do nosso próprio conforto, e nos afasta cada vez mais da natureza. E se todos temos fome e queremos comer, se todos queremos casa, carro, televisão e telemóvel, se todos somos vítimas da nossa «condição humana», os operários de Provisional Figures são as vítimas das vítimas, aqueles a quem cabe o trabalho sujo de manchar as mãos com sangue.

Mas, como em Tempos Modernos, o que se mostra em Provisional Figures é, acima de tudo, os valores da dignidade e grandeza humanas diante das várias formas de servidão. A nossa eterna busca por uma migalha de felicidade. «Havemos de nos arranjar», diz Chaplin à sua companheira no final do filme, à saída da cidade, afastando-se da fábrica para as montanhas, a caminho da Natureza. A arte como a mais poderosa, mas também a mais frágil, forma de rebelião contra o absurdo do mundo. Ou o «amor», como alguém repete na peça.

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