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Mensagens

A mão e a luva

LADY MACBETH What, will these hands ne'er be clean? — No more o' that, my lord, no more o' that: you mar all with this starting. (...) Here's the smell of the blood still: all the perfumes of Arabia will not sweeten this little hand. Oh, oh, oh! (Macbeth, acto 5, cena 1.) Shakespeare antes de ser Shakespeare fazia luvas. Era luveiro, como o pai. Que secretos fios ligam o luveiro e o dramaturgo? Quantos dos seus personagens não têm as mãos manchadas de uma qualquer espécie de sangue, real ou simbólico, que é preciso revelar ou encobrir? Quantas não calçam ou descalçam luvas para ocultar ou mostrar amor, ódio, afecto, raiva, angústia, amizade, desespero, culpa ou inocência? Quantas não calçam ou descalçam as mãos para dar ou tirar a vida? Quantas das suas palavras não são luvas que mostram ou escondem um imenso e inesgotável mapa do tesouro?

À escolha

Através dos tempos, a Verdade não tem sido a grande Rameira do espírito, a grande Galdéria da alma? Só Deus sabe se não deu em deboche com os primeiros homens que apareceram na terra depois do Génesis! Artistas, papas, labregos, reis, todos chegaram a possuí-la e a ter a certeza de que ela era só deles, à menor dúvida forneciam argumentos que não tinham réplica, que eram irrefutáveis, que eram decisivas provas. Para uns sobrenatural, para outros terrestre, semeou indiferentemente a convicção na Mesopotâmia das almas superiores e da parvónia espiritual dos idiotas. A todos fez festas de acordo com o seu temperamento, de acordo com as suas ilusões, as suas manias, a sua idade, ofereceu-se à concupiscência de certezas que em todos existia, e fê-lo sem regatear a posição e dos dois lados, à escolha. J. K. Huysmans, O castelo do homem ancorado ( En rade, no original). Tradução de Aníbal Fernandes. 

Contemporâneo

Contemporâneo é aquele que mantém o olhar fixo no seu tempo, de maneira a perceber não a sua luz, mas a sua sombra. Todos os tempos, para quem vive a experiência da sua contemporaneidade, são sombrios. Contemporâneo é quem sabe ver essa sombra e que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente. Giorgio Agamben, O que é o contemporâneo?

Selfie de um sujeito reles, hidropata, zutista, hirsuto, inventor, mistificador, boémio e galhofeiro.

Mais sobre o sujeito aqui .

Possessão

Estava em casa e esperava que a chuva viesse , na versão da  companhia Público Reservado , é o longo e lento bailado de cinco actrizes a dançar com um texto. É um daqueles raros momentos em que sentimos todo o poder das palavras, a prova cabal de todo o seu potencial eléctrico. Cinco corpos animados apenas por sílabas, como numa espécie de possessão. Cada gesto, cada movimento, cada inflexão ou pausa, é determinado pelas palavras. É por isso que não existe praticamente cenário, porque em lugar de objectos há vocábulos. É por isso que não existe música, porque o som que interessa é o das vozes. E é também por isso que os corpos se deslocam e dispõem no espaço de maneira rigorosamente matemática, porque a sintaxe tem uma ordem, um ritmo próprio, com acelerações e desacelerações, prolongamentos, repetições, ecos. Estava em casa e esperava que a chuva viesse não vale tanto pela construção literária — o texto de Jean-Luc Lagarce está entre A Casa de Bernarda Alba , de Lorca, e Danças a um

Agência de detectives

Este que é o último poema de Raymond Roussel foi publicado em 1932 embora, ao que parece, Roussel tenha parado de trabalhar nele em 1928. Obra de grande fôlego, Roussel refere a existência de várias versões inacabadas, redigidas durante a Primeira Guerra Mundial. (...) Provavelmente, só depois de ter terminado a respectiva redacção é que Roussel encomendou 59 ilustrações ao pintor académico Henri-Achille Zo, que conhecia pelo menos enquanto autor das ilustrações de Ramuntcho , de Pierre Loti. Contudo, não querendo entrar em contacto directo com ele, faz-lhe chegar através de uma agência de detectives instruções descritivas precisas, sem lhe dar a conhecer o texto.  François Piron, Locus Solus. Impressões de Raymond Roussel.

Casque d'Or

Noite alta. Marie chega a um “hotel manhoso” (a expressão é de Truffaut) e é recebida pela “patroa”. Tudo acontece no silêncio, quase sem palavras, como num sonho. A “patroa” acompanha Marie ao longo de uma interminável escada em caracol. A ascensão arrasta-se numa demorada e lenta sequência, degrau após degrau, um andar após outro. Dir-se-ia que Jacques Becker exige que subamos a escadaria com Marie, que sintamos o mesmo esforço, a mesma angústia. A subida termina num quarto escuro, iluminado por uma simples vela e uma janela. A janela abre para uma praça onde está instalada uma guilhotina. À primeira luz da manhã, o carpinteiro Manda, condenado à morte pelo crime de ter amado demasiado Marie, é conduzido ao patíbulo. Os guardas amarram o corpo a uma prancha de madeira, que ele mesmo podia ter feito com as suas mãos, e colocam-no em posição. A lâmina desce, como um relâmpago, sobre o pescoço do condenado. O movimento veloz da lâmina é inversamente proporcional ao da lenta subida de M