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Mensagens

Tétris

Tento imaginar deus a jogar um videojogo, repetida e obsessivamente. Uma espécie de tétris com figurinhas brancas em perpétuo movimento. A imagem que me ocorre é a de Dance , de Lucinda Childs.

Uma hora na vida de uma mulher

Notas para mais tarde (ainda sobre “Mulheres Excelentes”, antes da devolução do livro): voltar à cena do coelho branco (duas vezes: na página 151 com Everard e na página 241 atirado para os braços de Rocky) E isto (com a etiqueta “crítica literária enviesada”, páginas 166 e 167): “Comecei pela minha própria cozinha onde as coisas do almoço e do chá foram rapidamente lavadas e enxugadas, e depois desci à casa dos Napiers com o intuito de pôr alguma ordem na confusão que lá havia. Nunca se construiu um lava-louça suficientemente levantado para alguém razoavelmente alto e não tardei a sentir dores de costas por causa do esforço de lavagem, sobretudo porque houve que esfregar aturadamente os pratos gordurosos da véspera para que ficassem limpos. Os meus pensamentos não me davam descanso e veio-me ao espírito que, se alguma vez escrevesse um romance, seria do género “fluxo de consciência” e trataria de uma hora na vida de uma mulher ao lava-louça.”

Coisas fora de moda

"Quarteto no outono” e “A doce pomba morreu” estão guardados em depósito . Faz sentido, sentido pymiano quero eu dizer. Como não tinha tempo para perceber se, mesmo assim, os posso trazer para casa, requisitei “Uma rapariga no inverno". É sobre uma bibliotecária. Sinto-me no centro de um conluio — não tarda começa a nevar.

Saturno devorando os filhos

A imagem de Grossman não me sai da cabeça. Impossível não pensar na gigantesca estátua oca de Stálin , o pai dos povos, como um estranho Saturno devorando os filhos, aprisionando-os no seu interior, um após outro, angustiado pela ideia de poder ser destronado por um deles. Ou um outro Zeus que contrariasse a mitologia e que, em lugar de gerar Dioniso no interior da coxa, aí o sepultasse para sempre.

A perna oca de Stálin

No monte sobranceiro a Erevan ergue-se um monumento a Stálin. O gigantesco marechal de bronze avista-se de todos os lados. (...) A figura de corpo inteiro de Stálin tem 17 metros de altura. A estátua, juntamente com pedestal, eleva-se a 78 metros do chão. Quando o monumento estava a ser montado e os fragmentos do gigantesco corpo de bronze estavam deitados no chão, os operários passavam, sem encolherem as cabeças, por dentro da perna oca de Stálin. Vassili Grossman,  Bem Hajam! Apontamentos de Viagem à Arménia! Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra.

Em 1963

Barbara Pym escreveu e publicou seis romances entre 1950 e 1961. Dois anos depois, Jonathan Cape argumentou que as vendas não cobriam as despesas de impressão e recusou editar "An Unsuitable Attachment". Mesmo que o romance fosse mais fraco, soa a má desculpa. Na verdade o que Cape não teve coragem para dizer é que as personagens de Pym parecem desadequadas aos anos sessenta, são “pessoas comuns com expectativas realistas. Não são pessoas atraentes ou bafejadas pela sorte e nada fazem de grandioso nas suas vidas", como escreve Joana Graça, aqui . Então, enquanto Barbara Pym se retirava para um exílio literário em Oxfordshire, Philip Larkin — que se correspondia com a escritora e se esforçou pelo reconhecimento tardio da sua obra —, marcava 1963 como: annus mirabilis; o ano em que começou a haver sexo; entre o fim da proibição do Amante de Lady Chatterley; e o primeiro LP dos Beatles; a vida nunca foi tão boa como em 1963; oh yeah, oh yeah ; (embora tarde demais par

O castanho faz coisas más a pessoas acima dos trinta

Na página 105 de “Mulheres exemplares”, Mildred Lathbury diz a si mesma “no fim de contas, é assim que a vida é para a maioria de nós: os pequenos aborrecimentos em vez das grandes tragédias; as pequenas aspirações inúteis em vez das grandes rejeições e dos amores dramáticos da história ou ficção.” “Os pequenos aborrecimentos em vez das grandes tragédias” — basta este bocado para construir uma tese, literária ou de qualquer outra espécie. Nada contra. No entanto, se tivesse de escolher uma frase, descia uns parágrafos: — Não sei bem se está será a tua cor — disse eu, duvidosa. — Cheguei à conclusão de que devemos evitar o castanho. Faz coisas más a pessoas acima dos trinta, a menos que sejam muito inteligentes. Quando o meu casaco castanho se gastar, vou arranjar um preto ou azul-marinho. Esta observação de Mildred tem tudo para me agradar: a dúvida, as cores dos casacos, um itálico malandro, até os travessões.

Pimenta

O que há de mais impressionante em O Homem-Pykante - Diálogos Kom Pimenta é justamente a presença avassaladora de Alberto Pimenta. Se Pimenta se mexe um pouco para a direita, a imagem descai para a direita. Se Pimenta sai do plano, o filme desaparece. A força do poeta — as mãos, o rosto, os olhos e, acima de tudo, a voz — domina a tal ponto o filme que o trabalho de Edgar Pêra corre em segundo plano. Na verdade, tudo o que Pêra possa acrescentar e que não se foque na figura de Alberto Pimenta (os planos de pantomima na porta aberta para o rio, por exemplo) estará sempre a mais. O sujeito do filme é o filme. A sala de cinema transforma-se então numa casa de oração e nós em fiéis e crédulos adoradores de um estranho xamã. Não interessa se a história que Pimenta conta a seu respeito é ou não verdade. Estamos prontos a acreditar em tudo. Nesse sentido, Alberto Pimenta é o realizador do filme de Edgar Pêra. E é exactamente este equívoco autoral que faz do filme não uma simples homenagem

Gin e sandes de pepino

Ainda estou nas primeiras páginas mas já percebi que vou aprender muito sobre a palavra “excelentes”. Barbara Pym consegue virá-la do avesso com imensa piada. Também a palavra “adequados” ganha um novo sentido — servem, adequados têm de servir sempre, não é? — mas apertam como sapatos novos. Claro que o livro não é apenas uma questão de palavras em expansão, “Mulheres excelentes” tem expressões magníficas como esta: — Olá! A sua cara parece uma semana de chuva em Blackpool. Para além disto tudo — e, repito, estou apenas no início —, o tom é  tão   extremamente  britânico que parece que estou a ler em inglês. Às vez cheira a gin e a sandes de pepino.

The villain is more central than the hero

Significantly, the villain, Haghi (Rudolf Klein-Rogge) — is more central and prominent than the hero (Willy Fritsch), who’s identified in the credits only as “No. 326”. It is Haghi, after all, who is the first and last character of any importance that we see in the film. Architecturally, he’s the principal support of Lang’s house of fiction, holding up the entire structure, because every narrative path leads either up to him or away from him (...). In this respect, he clearly functions as Lang’s surrogate — an all-knowing puppetmaster who not only creates and animates the plot but also ultimately terminates it when he finds himself cornered in the final sequence. Disguised as an onstage clown, he shoots himself in the head as part of his act, soliciting a round of applause from the onscreen audience and thereby ending the film itself as the curtain falls. (The fact that Klein-Rogge was the first husband of Lang’s wife and co-writer Thea von Harbou only enhances his role as Lang’s doppe

Um pobre ignorante a tentar não se enganar

Nunca ninguém escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu, inventou, senão para sair realmente do inferno.  E para sair do inferno prefiro as naturezas deste convulsionário tranquilo às infestadas composições de Brueghel o Velho ou de Hieronymus Bosch que, em comparação, não passam de artistas, enquanto Van Gogh é só um pobre ignorante a tentar não se enganar. Antonin Artaud, Van Gogh, O suicidado da sociedade. Incluído em  Para acabar de vez com o juízo de Deus e outros textos finais (1946-1948). Tradução de Pedro Eiras. 

Dois bois

Foi o título que me chamou a atenção, nem sabia que era um texto sobre livros, podia ser qualquer coisa. Até fiquei com vontade de ler o romance de Yu Hua, mas a minha inquietação continua a ser: então uma pessoa é dois bois?
Gosto de ver a minha sombra projectada no chão. É longa e esguia e a cabeça parece mesmo a cabeça de um fósforo. A qualquer momento pode explodir. Bastava estar dentro de um filme do Cronenberg.

Foge-nos a terra sob os pés

Por que razão há momentos tão perturbantes em Nana , de Valérie Massadian? Por que motivo, em certos planos, sentimos medo daquela menina de quatro anos? Respondo por mim: porque Nana tem uma imaginação assombrosa. Se esse tipo de imaginação é uma manifestação natural na infância, é um dado mais ou menos irrelevante. A imaginação que não compreendemos ou controlamos é sempre uma ameaça. A imaginação «ingénua» (aspas vigorosas aqui) de uma criança como Nana ou a de um «louco» (aspas ainda mais vigorosas) provocam medo. A imaginação de um grande artista é um sobressalto permanente. A nossa própria imaginação pode lançar-nos no pânico. E a sequência que Valérie Massadian nos propõe, quase no final do filme, como uma possível «explicação» para os acontecimentos, não ajuda a esclarecer, apenas aumenta a nossa perturbação. Porque a dúvida persiste, agora e sempre: o que é real e o que é fantasia? Sem a ilusão de que existe uma fronteira clara entre os dois mundos, a terra foge-nos debai